terça-feira, 28 de outubro de 2008

A Crise Financeira Global Tem Uma causa Social: Os Baixos Salários Mundiais

por Emiliano Brancaccio [*]

entrevistado por Waldemar Bolze

O sr. sustenta que a crise financeira não é um fenómeno puramente técnico, mas tem uma causa social. Por que?
O ponto de partida é a fraqueza do movimento trabalhista, a qual tornou possível um mundo de salários baixos. Contudo, este muto é estruturalmente instável, o que estamos agora principiando a experimentar. Hoje todos os países tentam manter o nível de salário baixo, diminuindo portanto a procura interna, e têm de encontrar mercados externos para os seus próprios produtos.

Este mecanismo funcionou durante os últimos dez anos porque os Estados Unidos funcionaram como um "aspirador" para os produtos excedentes de outros países. E não porque os salários dos trabalhadores fossem demasiado altos e sim porque foi acumulada uma enorme dívida privada nos EUA. O sistema levou a trabalhadores a pagarem suas dívidas hipotecárias com novos empréstimos e a pagarem os juros dos empréstimos com novos cartões de crédito.

Poderia uma estrutura de crédito realmente tão frágil manter-se?

Isto não era senão um bomba relógio, a qual explodiu agora. As consequências são mais uma vez passadas aos trabalhadores e empregados, ao passo que os executivos da Wall Street, que fabricaram estes explosivos, podem até mesmo lucrar com isso.

Tome, por exemplo, o plano Paulson. Ele estipula que o governo vai comprar os activos arriscados dos bancos de investimento e em troca colocar dinheiro fresco à sua disposição, deixando a possibilidade de que os bancos, uma vez passada a tempestade, possam recuperar os seus títulos. Se o governo pagar preços bastante altos, os banqueiros podem finalmente embolsar um lindo lucro a expensas do orçamento do Estado.

Qual o impacto óbvio que terá esta crise?

Dependerá muito da sua duração e profundidade. Por enquanto, o establishment está a seguir uma estratégia que Giuseppe Tomasi di Lampedusa descreveu no seu livro O Leopardo: "Se quisermos que tudo permaneça na mesma, temos de mudar alguma coisa". O plano Paulson é um exemplo desta estratégia, porque consiste numa permuta de cash por dívidas, concebida para intervir o menos possível em termos de propriedade e de controle do capital bancário. O mesmo se aplica às vendas de acções preferenciais ao governo porque este restringe o direito de voto nas assembleias de accionistas.

Será que a ideologia do neoliberalismo fracassou e que os dias do capitalismo estão contados?
A ideia é divertida, mas seria ingénuo assumir um fim iminente do capitalismo. Não posso ver como tal coisa possa materializar-se. O grande ausente neste colossal estado de emergência é precisamente o movimento trabalhista. Ao invés disso, vejo a possibilidade de uma mudança no poder relativo dos lobbies das finanças para grupos de pressão política e também de lobbies ocidentais e americanos para outros asiáticos.

Podemos então falar do declínio do império americano?

Apesar da aparência e de todas as altas temporárias e dos acontecimentos a curto prazo, o declínio americano tem-se verificado de há pelo menos um quarto de século. Um sintoma deste declínio é o comportamento a longo prazo do dólar, cujo preço – convertido à divisa de hoje – em 20 anos caiu de 1,50 euro para cerca de 70 centavos de euro. Este declínio assegura desconfiança em relação ao dólar e provavelmente impedirá os EUA de desempenharem novamente o papel de "aspirador" para os produtos excedentes de outros países. Uma vez que não há um poder hegemónico internacional alternativo, há um perigo de que o sistema monetário internacional venha a encontrar-se num beco sem saída. Neste caso, o desenvolvimento desta crise poderia ganhar características realmente negras e imprevisíveis.

A entrevista original em alemão foi publicada em junge Welt , de 09/Outubro/2008.

[*] Professor de economia do trabalho na Universidade de Sannio, membro da Rifondazione Comunista, e conselheiro da maior federação italiana de sindicatos metalúrgicos, a FIOM-CGIL.

A versão em inglês encontra-se em http://mrzine.monthlyreview.org/bolze091008.html

Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/ .

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Wall Street vs Main Street

O apontar de dedos e a mudança de sistema

por Rick Wolff

Em meio à actual crise capitalista, propaga-se o medo e surgem bodes espiatórios. Os media e os políticos acusam os suspeitos do costume. Podem seguir-se prisões. Mas poucos reconhecem o sistema como sendo o próprio problema, ao invés deste ou daquele grupo que reage às exigências e pressões do mesmo. É verdade que a palavra "capitalismo" agora torna-se comum na discussão pública. Mas ela aqui está a significar o big business, os grandes bancos, ou a Wall Street, ao invés do próprio sistema que liga em conjunto todas as ruas, negócios, trabalhadores, famílias e governo.

Os da extrema direita mais primária culpam os compradores de casa, agora incapazes de pagar as suas hipotecas subprime. Aqueles ligeiramente mais refinados denunciam a intervenção do governo – destinada a ajudar as minorias e os pobres a tornarem-se proprietários de casas – por tudo o que for que aflija a economia. Os mais grosseiros de todos misturam Wall Street, banqueiros e iniciados vigaristas de Washington em conspirações para lucro pessoal e/ou vender os EUA ao comunismo mundial ou ao terrorismo ou talvez a muçulmanos.

À esquerda, entre os favoritos para o chicote incluem-se a Wall Street, banqueiros, hedge funds, executivos super bem pagos, corporações vigaristas e políticos comprometidos que deixaram coisas más acontecerem "à nossa economia". Os da esquerda mais refinada acrescentam condenações "à desregulamentação neoliberal". Desde a eleição de Reagan, dizem eles, as falhas do governo em regulamentar mercados e controlar empresas privadas facilitaram o mau comportamento das finanças selvagens que agora nos deixaram tão em baixo.

Nenhum lado trata o sistema capitalista como o problema básico. Mais exactamente, ambos sobretudo concordam em que a rede inter-actuante de corporações com seus conselhos de directores, administradores assalariados e trabalhadores assalariados são os fundamentos necessários e adequados "da nossa economia". Tal como aquela rede, o capitalismo aparece-lhes como inevitável, e portanto não há alvo apropriado para a direita ou a esquerda. Ao invés disso, eles debatem quanto de culpa deveria ser atribuída a este ou àquele grupo por "provocar" a crise: pessoas pobres, ou demasiada grande/pequena intervenção do governo, ou os ricos super remunerados com hedge funds, ou as corruptas maçãs podres que infectam o sistema. Os dedos apontam culpados que estragam um capitalismo – a "nossa economia" – que de outra forma funcionaria muito bem.

Considere-se o debate Wall Street X Main Street [1] . Muitos de esquerda e não poucos de direita acusam a Wall Street de "causar" a confusão das hipotecas subprime (como se incontáveis bancos da Main Street e correctores de hipotecas não tivessem vendido lucrativas hipotecas a habitantes locais incapazes de suportá-las). Eles olham com rancor a Wall Street por ter inventado os "derivativos", aqueles perigosos novos artifícios financeiros (como se os tipos da Main Street não houvessem investido e lucrado com eles). Os de esquerda clamam que a Wall Street levou os políticos a desregulamentarem a economia (como se muitos negócios na Main Street não apoiassem da mesma forma a desregulamentação e lucrassem com ela). Muitos de direita afirmam que a insuficiente desregulamentação do governo, devido à influência da Wall Street, provocou a crise (como se a Main Street não se beneficiasse com a intervenção do governo). Tanto os de direita como os de esquerda culpam a Wall Street e Washington por produzirem em conjunto a bolha habitacional e imobiliária (como se a Main Street não incentivasse os aumentos de preços e a construção de casas, a procura acrescida por produtos para as casas, os empregos resultantes, os rendimentos, a arrecadação fiscal, etc).

Quando este mais recente boom do capitalismo entrou em falência, a Wall Street e a Main Street mudaram da cooperação mutuamente lucrativa para uma luta pela sobrevivência. A Main Street teme que a Wall Street venha a utilizar seu poder, dinheiro e influência para despejar os sofrimentos da crise económica sobre os trabalhadores e os governos (cortando salários e empregos, pagando menos impostos, e exigindo mais ajuda e salvamentos do governo). Isto prejudicará a Main Street. O capitalismo funciona para transferir os custos económicos para baixo na estrutura económica e os ganhos económicos para cima. Assim, a Main Street combate com campanhas de opinião pública a culpar a Wall Street pela crise. Nesta desavença entre ladrões, esquerda e direita sobretudo tomam partidos ao invés de rejeitar o sistema que gerou aqueles ladrões. A posição alternativa seria exigir mudança do sistema.

Mudança de sistema não quer dizer o que Paulson e Bernanke agora planeiam: comprar acções de bancos privados dos EUA. Neste "nacionalização" parcial dos bancos, o governo estado-unidense comprar e possuirá acções de bancos e possivelmente colocará responsáveis do Estado nos conselhos directores dos bancos. Empresas privadas tornar-se-ão portanto, parcialmente e provavelmente temporariamente, empresas públicas. Esta mudança é grande para Bush, Paulson e Bernanke porque eles sempre denunciaram empresas públicas como socialismo ou comunismo.

Mas substituir membros privados de conselhos de administração de bancos (eleitos por e responsáveis perante accionistas privados) por membros públicos (nomeados por e responsáveis por funcionários do Estado) basicamente não muda o sistema. Os trabalhadores ainda trabalham das 9 às 17; eles ainda seguem as ordens da direcção; e os bens, serviços e lucros que eles produzem pertencem aos conselhos de administradores para servirem os seus interesses. Tais conselhos, sejam privados ou públicos, ainda dão as ordens, vendem os produtos, recebem os rendimentos e decidem como utilizar os lucros. As profundas desigualdades entre trabalhadores e conselhos de administração permanecem. A profunda ausência de democracia no lugar de trabalho capitalista permanece. Tanto conselho de administração públicos como privados historicamente procuraram evadir, enfraquecer ou eliminar controles e regulamentações do Estado que limitavam sua liberdade de acção e sua lucratividade (tanto na URSS como nos EUA).

O capitalismo tem oscilado por toda a parte entre fases privadas e públicas. O capitalismo privado minimizou intervenções governamentais e sobretudo manteve funcionários do Estado fora de conselhos de administração. Em fases públicas do capitalismo, intervieram governos e por vezes substituíram membros privados de conselhos de administração por outro públicos. Crises de uma fase muitas vezes provocaram transição para a outra. A crise de 1929 do capitalismo privado dos EUA conduziu à intervenção do Estado do New Deal de Roosevelt (estabelecendo segurança social, seguro de desemprego e outros custosos – para os negócios – programas e regulamentos). A crise da década de 1970 do capitalismo regulado pelo Estado devolveu os EUA a outra fase capitalista privada, a era Reagan-Bush, a qual desfez a maior parte do New Deal. O que se seguirá à crise de hoje do capitalismo privado? Será que o pêndulo oscilará de volta ao capitalismo re-regulamentado pelo Estado? Se assim for, a comunidade de negócios dos EUA utilizará décadas de perícia acumulada em evadir, enfraquecer e finalmente eliminar a regulamentação do Estado. A re-regulamentação terá portanto vida curta. Ou poderá a alternativa da mudança do sistema tornar-se importante?

A mudança do sistema completaria a re-regulamentação com uma transformação dentro das empresas. Suponha que antigos conselhos de administração sejam substituídos por novos conselhos cujos membros entendem e partilham os objectivos da regulamentação ao invés de encarar a regulamentação como limitações a serem minadas. Isto pode acontecer se os novos conselhos abrangerem a colectividade dos próprios trabalhadores. As descrições de tarefa de todos os trabalhadores daí por diante combinariam o trabalho particular de cada um com a sua plena participação nas tarefas colectivas do conselho de administração.

Deste modo, trabalhadores-também-como-patrões poderiam conformar as regulamentações económicas – juntamente com outros trabalhadores dirigindo outras empresas – e então executá-las dentro de cada empresa. O conflito de interesses entre empregadores e empregados seria transformado uma vez que já não haveria grupos diferentes e opostos. Isto seria uma mudança real do sistema. Sem isto, conselhos de administração, privados e/ou públicos, continuarão a funcionar no futuro como o fizeram no passado. Eles minarão regulamentações destinadas a fazer com que a economia sirva a sociedade, continuarão a dirigir as suas empresas não democraticamente, manterão desigualdades económicas e continuarão a gerar crises económicas como aquela hoje impõem sobre todos nós.


14/Outubro/2008

[1] Nos EUA diz-se dos pequenos negócios que são da "Main Street".

O original encontra-se em http://mrzine.monthlyreview.org/wolff141008.html

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

As Sete Vacas, Magrérrimas

por Guillermo Almeyra [*]

O suposto País das Maravilhas caiu no período atroz das pragas e das vacas magras. A actual crise financeira que abala os Estados Unidos e os restantes grandes centros capitalistas – e afecta duramente os da periferia – é apenas o começo de uma grande recessão e de uma depressão. Dar dinheiro aos banqueiros é lançá-lo num poço sem fundo. Porque o problema consiste em que a redução dos salários reais e a carestia reduzem o consumo, pois os consumidores super endividados temem pelo seu futuro e tratam de poupar e de consumir menos. Assim, as dívidas não podem ser pagas e ninguém se arrisca a dar crédito, as fábricas ao não venderem todos os seus produtos suspendem pessoal ou despedem-no, a desocupação alimenta a espiral recessiva, os emigrantes são expulsos ou perdem seu trabalho, o consumo de petróleo de outras matérias-primas é menor e seu preço cai, levando a crise aos sectores capitalistas extractivos ou agrícolas.

Com o derrube da União Soviética e o boom capitalista na China, o capital havia conseguido um enorme mercado de mão-de-obra cujos salários baixíssimos serviam para fazer baixar também os dos países industriais, seja por levarem as fábricas para a China, Vietnam ou os ex países "socialistas" da Europa oriental, seja por chantagearem os trabalhadores locais com essa ameaça. A transformação da China de uma grande potência que fabricava produtos de consumo baratos numa grande potência financeira que sustenta as finanças dos Estados Unidos e investe nesse país deu um duro golpe no capitalismo estado-unidense. Seus produtos de consumo não puderam competir com os salários chineses, suas fábricas e maquiladoras transferiram-se para o Oriente, inclusive a partir de países com salários baixíssimos como o México ou a Guatemala que se converteram em expulsores de mão-de-obra para os Estados Unidos. Este endividou-se e teve um défice comercial e também financeiro crescente. O crédito baratíssimo e a falta de controles sobre a especulação hipotecária e financeira alentaram o crescimento da bolha e a ideia dos cidadãos de que tudo ia bem e iria ainda melhor porque o país era sólido, uma grande potência e podia fazer qualquer coisa, sem excepção.

Tudo isso acabou, tal como depois da guerra acabou-se o poderio da libra esterlina e da Inglaterra como primeira potência financeira e industrial mundial. É certo que a unificação capitalista do mercado mundial faz com que a Rússia se quiser vender gás e petróleo (e armamentos) tenha de preocupar-se em evitar o colapso dos grandes países industriais e que se a China quiser exportar e cobrar seus títulos estado-unidenses deva preocupar-se pela manutenção do consumo no Estados Unidos, de modo que os competidores de Washington estão ligados ao futuro estado-unidense como ladrões atados por uma mesma corda. Mas o facto é que os Estados Unidos dependem da China, da União Europeia, da Rússia e não estes dos EUA. O omnipotência dá lugar à negociação-competição conflitiva de modo permanente. Washington hoje está em liberdade vigiada.

Seu futuro depende, como o de todas as outras potências, de que o capitalismo não caia por si só. Ou seja, de que não haja nenhuma força importante que compreenda que capitalismo, crise, guerra e desastre ambiental são uma só e a mesma coisa, provocada por uma mesma classe e um mesmo tipo de políticas e que não são inevitáveis nem resultados da perversidade do Senhor.

Falta então o coveiro do capitalismo. De modo que o provável é que a China, em vez de vender seus activos em dólares e por as suas reservas em outra moeda, sustentará os Estados Unidos, tentando ao mesmo tempo retirar alguma vantagem da crise. Porque se não exportasse bens de consumo para os Estados Unidos e a UE, suas fábricas fechariam, aumentaria a desocupação e poderiam surgir greves e sublevações camponesas. Mas, ao mesmo tempo, a crise no Ocidente é sobretudo uma crise do sector que produz alta tecnologia e bens de produção, o qual deixa à China margem para o seu desenvolvimento no referido sector, passando a ser uma grande potência tecnológica, financeira, industrial e comercial dentro de mais uns poucos anos. Nos anos 30, Franklin Roosevelt retirou os Estados Unidos do poço mediante grandes obras públicas keynesianas, concessões sociais importantes e a preparação da guerra mundial. A China poderia, só ou com a ajudar militar e técnica da Rússia, combater a contaminação, elevar os rendimentos, criar uma grande indústria pesada e um grande sector tecnológico de ponta. O centro do capitalismo mundial deslocar-se-ia assim, num futuro não muito longinquo, para o Oriente e os Estados Unidos voltariam então a ser uma grande potência regional, aumentando sua pressão sobre um continente que ameaça escapar-lhe.

Acerca dos efeitos da crise na América Latina será necessário voltar. Mas, em geral, muitos países serão afectados pela redução das remessas dos migrantes e abalados socialmente porque a migração será menor e reduzir-se-á essa válvula de escape que evitava explosões sociais. Além disso cairão os preços das matérias-primas agrícolas e mineiras e algo do petróleo, ainda que este seja mais escasso porque seus preços menores tornarão muito custosos os desenvolvimentos das jazidas de alto mar (como as brasileiras). Finalmente, agudizar-se-á a disputa pelos rendimentos entre os diferentes sectores capitalistas, por um lado, e entre os capitalistas e os trabalhadores e os pobres, pelo outro, enquanto a tendência à integração, ao desenvolvimento do mercado interno e a "viver com o que se tem" aumentará e a aceitação da ideologia neoliberal receberá um golpe duro.

[*] Doutor em Ciências Políticas (Univ. París VIII), professor investigador da Universidade Autónoma Metropolitana, unidade Xochimilco, do México, professor de Política Contemporânea da Faculdade de Ciências Políticas e Sociais da Universidade Nacional Autónoma do México.

O original encontra-se em http://www.jornada.unam.mx/2008/10/05/index.php?section=opinion&article=016a1pol

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

A Crise Financeira Global Tem Uma causa Social

A crise financeira global tem uma causa social: os baixos salários mundiais
por Emiliano Brancaccio [*]

entrevistado por Waldemar Bolze

O sr. sustenta que a crise financeira não é um fenómeno puramente técnico, mas tem uma causa social. Por que?

O ponto de partida é a fraqueza do movimento trabalhista, a qual tornou possível um mundo de salários baixos. Contudo, este muto é estruturalmente instável, o que estamos agora principiando a experimentar. Hoje todos os países tentam manter o nível de salário baixo, diminuindo portanto a procura interna, e têm de encontrar mercados externos para os seus próprios produtos.

Este mecanismo funcionou durante os últimos dez anos porque os Estados Unidos funcionaram como um "aspirador" para os produtos excedentes de outros países. E não porque os salários dos trabalhadores fossem demasiado altos e sim porque foi acumulada uma enorme dívida privada nos EUA. O sistema levou a trabalhadores a pagarem suas dívidas hipotecárias com novos empréstimos e a pagarem os juros dos empréstimos com novos cartões de crédito.

Poderia uma estrutura de crédito realmente tão frágil manter-se?

Isto não era senão um bomba relógio, a qual explodiu agora. As consequências são mais uma vez passadas aos trabalhadores e empregados, ao passo que os executivos da Wall Street, que fabricaram estes explosivos, podem até mesmo lucrar com isso.

Tome, por exemplo, o plano Paulson. Ele estipula que o governo vai comprar os activos arriscados dos bancos de investimento e em troca colocar dinheiro fresco à sua disposição, deixando a possibilidade de que os bancos, uma vez passada a tempestade, possam recuperar os seus títulos. Se o governo pagar preços bastante altos, os banqueiros podem finalmente embolsar um lindo lucro a expensas do orçamento do Estado.

Qual o impacto óbvio que terá esta crise?

Dependerá muito da sua duração e profundidade. Por enquanto, o establishment está a seguir uma estratégia que Giuseppe Tomasi di Lampedusa descreveu no seu livro O Leopardo: "Se quisermos que tudo permaneça na mesma, temos de mudar alguma coisa". O plano Paulson é um exemplo desta estratégia, porque consiste numa permuta de cash por dívidas, concebida para intervir o menos possível em termos de propriedade e de controle do capital bancário. O mesmo se aplica às vendas de acções preferenciais ao governo porque este restringe o direito de voto nas assembleias de accionistas.

Será que a ideologia do neoliberalismo fracassou e que os dias do capitalismo estão contados?

A ideia é divertida, mas seria ingénuo assumir um fim iminente do capitalismo. Não posso ver como tal coisa possa materializar-se. O grande ausente neste colossal estado de emergência é precisamente o movimento trabalhista. Ao invés disso, vejo a possibilidade de uma mudança no poder relativo dos lobbies das finanças para grupos de pressão política e também de lobbies ocidentais e americanos para outros asiáticos.

Podemos então falar do declínio do império americano?

Apesar da aparência e de todas as altas temporárias e dos acontecimentos a curto prazo, o declínio americano tem-se verificado de há pelo menos um quarto de século. Um sintoma deste declínio é o comportamento a longo prazo do dólar, cujo preço – convertido à divisa de hoje – em 20 anos caiu de 1,50 euro para cerca de 70 centavos de euro. Este declínio assegura desconfiança em relação ao dólar e provavelmente impedirá os EUA de desempenharem novamente o papel de "aspirador" para os produtos excedentes de outros países. Uma vez que não há um poder hegemónico internacional alternativo, há um perigo de que o sistema monetário internacional venha a encontrar-se num beco sem saída. Neste caso, o desenvolvimento desta crise poderia ganhar características realmente negras e imprevisíveis.

A entrevista original em alemão foi publicada em junge Welt , de 09/Outubro/2008.

[*] Professor de economia do trabalho na Universidade de Sannio, membro da Rifondazione Comunista, e conselheiro da maior federação italiana de sindicatos metalúrgicos, a FIOM-CGIL.

A versão em inglês encontra-se em http://mrzine.monthlyreview.org/bolze091008.html

Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/ .

Génese da Crise

por Alejandro Nadal

A Reserva Federal arrisca-se cada vez mais e agora anuncia planos para comprar dívida de curto prazo às empresas. Isso distorce cada vez mais sua função original e revela a gravidade da situação. A ferocidade da crise, é claro, obriga a uma análise mais cuidadosa sobre a sua génese e a agenda política que lhe corresponde.

Em Janeiro de 1980 o governo estado-unidense autorizou o resgate da companhia automobilística Chrysler, que se encontrava em dificuldades desde 1975 devido à recessão. Os dirigentes da companhia propuseram um plano ao governo para reestruturar a empresa, fechando fábricas, reduzindo salários e cortando benefícios. Tudo isto seria feito com a ajuda da burocracia sindical.

Nos anos seguintes a Chrysler fechou 28 fábricas nos Estados Unidos, despediu 48 mil operários (de um total de 98 mil). Outros 20 mil empregados também perderam o seu emprego. Os mais jovens e militantes foram os primeiros a ser despedidos, ao passo que a burocracia sindical era recompensada. Numa manobra apresentada como exemplo de colaboração entre trabalhadores e empresa, o secretário do sindicato converteu-se em membro do conselho de directores da companhia.

Em Agosto de 1981 o sindicato de controladores aéreos profissionais dos Estados Unidos desencadeou uma greve em busca de aumentos salariais e melhores condições de trabalho. O sindicato estava a violar uma lei que proibia empregados federais de recorrerem à greve. O então presidente Reagan decidiu que isto era uma ameaça para a segurança nacional e enviou um ultimatum: ou regressavam ao trabalho em 48 horas ou seriam despedidos. Só uma minoria obedeceu e foram despedidos mais de 11 mil controladores. O sindicato perdeu seu registo em Outubro desse ano.

Estes dois episódios marcaram o princípio de uma ofensiva profunda contra os sindicatos nos Estados Unidos. O resultado principal foi o declínio dos sindicatos nesse país: entre 1977 e 1997 a percentagem da força de trabalho empregada com filiação sindical passou de 25 por cento a 14 por cento. O grande aliado do capital foi a chamada flexibilização laboral e, em especial, a eliminação de restrições para despedir trabalhadores (o sistema ficou conhecido pela frase hire and fire, contrata e despede). Outra arma contra os sindicatos foi a ameaça de perderem empregos devido ao livre comércio. A retórica das empresas era clara: se os sindicatos não reduzem suas exigências, perderemos a batalha da competitividade, fecharemos e todos sairão perdendo. A burocracia sindical acomodou-se, abandonando a busca de melhores condições laborais para cooperar com os patrões e o governo.

Em resultado, o salário mínimo e os contratuais sofreram uma redução de quase 10 por cento durante o período de 1979 a 1997. Seguiu-se uma modesta recuperação depois de 1998, o que permitiu recuperar o nível de 1979 em 2003. Contudo, a partir desse ano os salários retomaram sua tendência descendente. Ao longo destes anos intensificou-se a precariedade do trabalho e deteriorou-se a qualidade do emprego.

Durante este período histórico verifica-se um extraordinário incremento da desigualdade nos Estados Unidos. Entre 1973 e 1990 a produtividade manteve-se estagnada, mas entre 1995 e 2005 aumentou em 30 por cento. Contudo, os benefícios desse aumento foram para os estratos mais ricos: os 20 por cento mais privilegiados da força de trabalho activa viram seus rendimentos reais aumentar 30 por cento. Ao mesmo tempo, a queda no salário real dos 20 por cento mais desfavorecidos foi de 22 por cento.

Esta perda de poder aquisitivo do salário é parte importante das origens da crise actual, porque teve de ser compensada com endividamento privado para manter níveis artificiais de procura efectiva. Toda uma geração não teve outro remédio senão endividar-se para manter seus níveis de consumo. As bolhas que atenuaram os efeitos negativos dos ciclos de negócios são apenas um aspecto deste endividamento.

O capitalismo estado-unidense reagiu contra o movimento sindical e a classe trabalhadora porque a queda na rentabilidade a partir dos anos 70 obrigou a limitar as remunerações ao trabalho. Deste modo, o sonho americano foi sacrificado no altar do capital. Há muitos dados que permitem documentar o que foi dito, mas tudo isto conduz a outra pergunta: por que caíram os níveis de rentabilidade? Os níveis de capacidade instalada nesta etapa da acumulação do capital sem dúvida estão relacionados com esta evolução da rentabilidade. Mas isto não é suficiente e este tipo de análise só desloca o problema para leva a uma última interrogação: carregará o capitalismo nas suas entranhas a semente da sua própria destruição? A agenda política que decorre desta reflexão obriga a colocar o problema das alternativas ao capitalismo, tema injustificadamente relegado a um rincão obscuro desde há 20 anos.


08/Outubro/2008

O original encontra-se em
http://www.jornada.unam.mx/2008/10/08/index.php?section=opinion&article=030a1eco

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Identificada causa da osteoporose

25 Agosto 2008 - 00h30

Estudo de investigadores da Coreia do Sul
Identificada causa da osteoporose

Cientistas sul-coreanos descobriram o mecanismo por detrás da osteoporose, uma doença que afecta em particular as mulheres depois dos 50 anos. A descoberta tem como base experiências em ratos de laboratório mas pode dar origem a novas linhas de investigação para remédios inovadores.

De acordo com a equipa de cientistas da Universidade Nacional de Seul, liderada por Kim Hong-hee, as conclusões da investigação confirmam que existe uma proteína, a CK-B, que é responsável por activar o processo de deteorização dos ossos. Ao bloquear a proteína nos ratos, impediram a descalcificação dos ossos. As conclusões serão publicadas na revista da especialidade ‘Nature Medicine’.

Actualmente os tratamentos para esta doença têm como base a ingestão de cálcio e vitamina D, mas podem causar outro tipo de complicações. Com a identificação do papel da proteína CK-B, podem surgir novas formas de abordar a doença, evitando os efeitos secundários.

A osteoporose é hoje um problema de saúde pública. Em Portugal, estima-se que atinja 500 mil pessoas e afecte uma em cada três mulheres após os 50 anos. Traduz-se numa diminuição da massa óssea que faz com que haja uma maior fragilidade do osso. O resultado é um maior risco de se partir. Prevê-se que, nos próximos 50 anos, o número de pacientes duplique pelo aumento da longevidade.

Via: http://www.correiomanha.pt/noticia.aspx?contentid=930F0CEE-5AE1-4E7A-9543-6BFCDEA798AC&channelid=F48BA50A-0ED3-4315-AEFA-86EE9B1BEDFF

Morte de bebés levanta véu sobre testes clínicos

NICOLAS REVISE
Jornalista da France-Presse

Índia.
A Fundação Uday suspeita que o maior hospital do país convenceu famílias dos bebés, pobres e analfabetas, a deixar submetê-los a testes gratuitos para laboratórios do Ocidente
A morte de 49 bebés cobaias no maior hospital indiano levantou a ponta do véu sobre o boom da deslocalização dos ensaios clínicos de medicamentos da indústria farmacêutica mundial. A morte destes bebés, em dois anos e meio, foi agora revelada pelo diário Times of India.

O administrador do Instituto das Ciências Médicas de Nova Deli, Shakti Kumar Gupta, disse à France- -Presse que "foi ordenado um inquérito interno" sobre os testes de produtos dos laboratórios suíços Roche e Novartis e do japonês Sankyo Pharma. Em Junho, a Fundação Uday para os defeitos congénitos e os grupos sanguíneos raros agarrou o caso graças a uma lei que dá ao cidadão indiano o direito de interrogar um organismo de Estado. O presidente daquela instituição, Rahul Verma, questionou o hospital público.

Desde 2006 que 4142 bebés (2728 menores de um ano ) foram submetidos a testes. Este reconheceu que "as 49 mortes foram registadas entre os bebés referenciados". Segundo Gupta, estes ensaios foram validados pelo comité de ética e são conformes às directivas. Sem especificar os problemas dos bebés, disse que "os falecidos estavam muito doentes".

A Fundação Uday pediu ao hospital a lista dos medicamentos administrados. O hospital revelou o Rituximab comercializado na Europa pela Roche, para pacientes com "linfoma não Hodgkin agressivo"; a substância Olmésartan para a tensão arterial, da Sankyo Pharma; e o Valsartan, da Novartis, dos EUA, para a hipertensão. "Não houve nenhum teste pediátrico com produtos da Roche na Índia", disse Claudia Schmitt, porta-voz do grupo em Basileia. Sem excluir que "se possa utilizar este Rituximab" no decurso de testes, a porta-voz da Roche francesa, Déborah Szafir, assegurou que "a Roche não o autorizou, nem deu, nem apoiou".

A deslocalização de testes clínicos é um caso a seguir. Calcula-se que este outsourcing valha 120 milhões de dólares em 2007, e cresça 25% ao ano. Até 2010, chegará aos dois mil milhões. Os testes são mais baratos entre 40 a 60% do que no Ocidente. Mas não explicam sozinhos o apetite dos laboratórios pela Índia. "É o mercado indiano que faz sentido", justifica Schmitt.

A Índia tonou-se terreno de testes sem limite pela diversidade da população e pelos batalhões de "doentes com patologias do coração e fígado, mais fáceis de encontrar do que no Ocidente para serem cobaias." |

Via:http://dn.sapo.pt/2008/08/25/ciencia/morte_bebes_levanta_sobre_testes_cli.html

domingo, 24 de agosto de 2008

Chegará a vez deles

Baptista Bastos
b.bastos@netcabo.pt

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No conflito que opõe a Geórgia à Rússia as explicações não parecem ser tão lineares quanto a comunicação social portuguesa nos propõe. Apesar de todo o cuidado posto nas frases, Carlos Santos Pereira foi, até agora, o único comentador que esclareceu a natureza da pendência.

Vou tentar resumir: desde 1990 que as Nações Unidas tutelam a Ossetia do Sul, e, desde 2003, os Estados Unidos têm um peão no presidente da Geórgia, Mikheil Saakachvili, o que permite a constituição de uma espécie de tenaz proliferante, com pontos "amigáveis" na Ucrânia, e a ameaça de instalação, pelos americanos, do sistema antimísseis, na República Checa e na Polónia.

Como retaliação, os russos anunciam apontar os seus mísseis à Ucrânia e à Polónia. Junte-se-lhe a questão dos combustíveis e adivinhar-se-á a crispação internacional, colocada ante uma outra face de uma outra Guerra Fria.

No "Diário de Notícias", Santos Pereira esclarece, citando George Friedman, director do Observatório de Análise Geopolítica: "Pela primeira vez desde o colapso da União Soviética, os russos lançaram uma acção militar decidida, e impuseram uma situação militar.

Fizeram-no de forma unilateral, e os países que olhavam para o Ocidente, para intimidar a Rússia, vêem-se agora obrigados a ter em conta o que aconteceu."

Tudo leva a crer que a exibição de força russa conduzirá a um recuo dos Estados Unidos.

Este é o eixo do problema. Sabe-se que, tanto na Ucrânia como na Geórgia, a intervenção dos americanos não se limitou ao envio de centenas de "assessores" militares: o investimento, naqueles países, de milhões e milhões de dólares não são demonstrações de compaixão nem expressões de solidariedade.

Seja quem for o próximo presidente, o legado deixado por Bush revela-se um bico-de-obra de difícil solução. E adiante-se que nenhum dos dois intervenientes está disposto à humilhação de uma derrota desacreditante. Por outro lado, a política externa francesa já exprimiu a gravidade do caso, ao mesmo tempo que inflecte para o lado da razão russa. Fê-lo com o melindre que o assunto envolve. Mas fê-lo.

Há uma extraordinária superficialidade no tratamento destas crises, por parte dos jornais, das rádios e das televisões portuguesas. A grande rábula da designada "visão ocidental dos acontecimentos" encobre ignorância, leviandade e cumplicidade.

A autêntica "visão" será a da procura da "verdade", o que quer que esta palavra hoje signifique. De facto, em todos os conflitos não existe uma razão unilateral. As responsabilidades cabem a muitas partes, inclusive aquelas que não aparecem à luz do dia. E não há "distanciação" possível quando a beligerância, nascida sempre de manobras políticas, atinge níveis como os registados nesta guerra.

Raras vezes a Imprensa (não só a portuguesa, mas sobretudo a portuguesa) foi ao fundo das questões. E o anticomunismo ainda se não desvaneceu do espírito da esmagadora maioria dos "comentadores", como se não houvesse outros e novos e surpreendentes temas e teses a merecer a sua atenção. O preconceito obnubila qualquer sentido crítico, por mais ténue que ele seja. Eles falam e escrevem como se o comunismo não tivesse acabado. Ou não acabou? Ou como se a Rússia estivesse a desenvolver potencialmente uma espécie de niilismo, resultante da nostalgia comunista. Tudo isto é ridículo.

A perspectiva na qual se colocam os "colunistas" permite que os consideremos ou ineptos, ou preguiçosos, ou ignorantes. Ou isso tudo, com canalhice à mistura.

Estamos a assistir a acontecimentos de conclusões imprevisíveis. A liberdade tem sido espezinhada em nome de uma paz falaciosa. Pouco sabemos, com rigor, das grandes transformações por que passa parte substancial da América Latina, e das dificuldades tremendas com que se deparam os governos não submissos ao "diktat" dos EUA.

A nossa comunicação social, neste como em numerosos e vários casos, emudece, ou faz pender a balança da informação e da análise para um só lado. Não é só um erro profissional: é uma estrebaria moral, um ultraje deontológico e uma perfídia abjecta.

O descrédito que tombou sobre a nossa Imprensa, a quebra avassaladora das tiragens, deve-se, grandemente, à perda dessa unidade fundamental entre o jornal e o leitor.

Muitos portugueses lêem e falam francês, inglês e alemão.

É absurdo ignorar esta vertente do conhecimento. Encontram na Imprensa estrangeira o que nem por sombras é publicado na de cá. Haverá "felicidades diferentes", como reconhecia Camus.

Porém, verdades impostas pela multiplicação de manipulações, de omissões e de enganos, são difíceis de manter por tempo excessivo. Entre a separação e a comunhão, o leitor avisado tem escolhido a primeira.

A semelhança entre os jornais, a ausência de causas, a uniformidade do estilo, a "distanciação", a morte da paixão em favor da gelidez da prosa, o mesmo registo filosófico e análogas "linhas" editoriais afugentaram milhares e milhares de leitores. Ancilosados na superstição de que aquilo que escrevem faz opinião, muitos directores de jornais (e lembro-me, neste momento, de alguns, por igual desprezíveis) não entendem que, mais cedo ou mais tarde, os seus "serviços" serão dispensados.

Chegará a vez deles. Para parafrasear um famoso editorial do "Jornal Novo".

SNS - Exclusividade Ou Apenas Dedicação

Manuel J. Antunes
professor catedrático
director de serviço dos Hospitais da Universidade de Coimbra


De repente, pareceu-me ver uma luz ao fundo do túnel… O Ministério da Saúde anunciava a intenção de implementar a dedicação exclusiva dos médicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Há mais de 20 anos que venho a pugnar por essa medida. Estou convicto de que nela reside um importante factor de melhoria de produtividade, de que o nosso SNS muito necessita. Assim o concluiu a maior parte dos serviços de saúde públicos dos principais países europeus, como também o parecem ter decidido os operadores das instituições privadas recentemente criadas no nosso país.

Efectivamente, o regime típico de part-time da maior parte dos médicos do SNS não favorece a sua rentabilidade. Um horário de 35 horas, incluindo 12 para serviço de urgência, deixa aos médicos pouco mais de quatro horas diárias para as tarefas de rotina. Salas de operação a funcionar apenas quatro ou cinco horas por dia são duplamente onerosas. E o mesmo se pode dizer, embora em escala diferente, das consultas externas, que, geralmente, funcionam apenas cinco manhãs por semana.

Por outro lado, a ênfase agora posta nos níveis intermédios de gestão, com uma maior autonomia e responsabilização dos serviços, faz com que seja impossível conduzi-los com eficiência sem que todo o pessoal médico, e o próprio director, trabalhe, em dedicação plena, as 42 horas semanais.

Finalmente, a divisão da actividade dos médicos pelos sectores público e privado é susceptível de originar conflitos de interesse, sendo certo que quanto maior e melhor for a produção no público tanto, menor será o número de doentes que ocorrerá ao privado, de onde as suas expectativas de ganho serão diminuídas. Acresce que o duplo emprego é gerador de irracionalidades na distribuição do tempo de trabalho e de subutilização das estruturas do sistema. Por isso, os directores de serviço deveriam ser os primeiros a conquistar para um tal regime. Há evidência de que esta opinião é partilhada por um número cada vez maior de médicos, especialmente entre os mais novos, embora seja rejeitada pela Ordem dos Médicos, com o argumento principal de que os médicos devem ser livres de fazer o que entenderem do seu próprio tempo. Argumento que até eu sou capaz de aceitar e, por isso, prefiro deixar cair a estafada designação de exclusividade e adoptar a de dedicação plena (ou total, como referida na legislação dos centros de responsabilidade). Isto é, colocando maior ênfase no tempo dedicado ao hospital e relegando para lugar secundário saber o que se faz quando se está fora dele, sem deixar de separar as águas, sendo evidente que há que evitar a autocompetição. Logicamente, um tal estatuto não pode ser imposto a curto prazo aos que actualmente se encontram em funções. Pelo contrário, teria de ser um projecto de médio a longo prazo (pelo menos seis a dez anos), o que não impede que pudesse ser aplicado no imediato aos que a partir de agora entrem no SNS, bem como aos que por qualquer razão, incluindo por promoção, venham no futuro a modificar o seu estatuto actual. Acena-se com o fantasma da debandada geral para o sector privado, esvaziando o público dos seus melhores elementos. Mas, como é óbvio, tal só aconteceria se o privado tivesse a capacidade de os absorver a todos, o que, claramente, não tem. Mas é evidente que, se se quiser fixar os médicos ao hospital, o novo estatuto teria de ser apoiado por melhorias significativas das condições de trabalho, remuneratórias e outras. Disse a ministra que o SNS não está (ainda) preparado para tal. Se é ao problema económico que se refere, estou em crer que a resultante contracção significativa dos quadros acabaria por minimizar eventuais alterações dos custos, adicionalmente contrabalançada pela melhoria da produtividade e redução do desperdício. Mas afinal, segundo as declarações da própria ministra, não se trata de uma decisão firme, apenas de um balão de ensaio lançado para a discussão com os parceiros sociais, que, obviamente, não parecem inclinados a aceitá-lo. Um balde de água fria! O estatuto de exclusividade, instituído em 1988, foi desde sempre utilizado de forma perversa, sem se ter tido o cuidado de controlar o respectivo impacto na produtividade. O exemplo típico é o do médico em fim de carreira, que passa ao regime de exclusividade a um par de anos da aposentação, com o fim único de aproveitar as vantagens financeiras na respectiva pensão. É a completa deturpação da sua finalidade. Se se quiser melhorar o sistema, tem de se ter a coragem de o modificar radicalmente. A dedicação plena virá. Inevitavelmente. Espero que não muito tarde… |

Via: http://dn.sapo.pt/2008/08/24/opiniao/exclusividade_apenas_dedicacao.html

domingo, 27 de julho de 2008

Menos Filhos Para Salvar O Planeta

25 de julho, 2008 - 12h36 GMT (09h36 Brasília)


Médico sugere menos filhos para salvar planeta
Um editorial publicado na edição desta sexta-feira da revista científica britânica British Medical Journal afirma que ter menos filhos é uma forma de contribuir para o combate ao aquecimento global.

O artigo, assinado pelo professor de planejamento familiar do University College, de Londres, John Guillebaund, afirma que ''a população mundial atualmente excede 6,7 bilhões e o consumo de combustíveis fósseis, água potável, colheitas, peixes e florestas excedem a oferta''.

Segundo o especialista, ''estes fatos estão relacionados'', uma vez que cada pessoa que nasce contribui para a emissão de gases poluentes e é impossível escapar da pobreza sem que haja um aumento dessas emissões.

Guillebaund conclui que ''aplicar contracepção ajuda, portanto, a combater as mudanças climáticas, ainda que não seja um substituto direto para a redução das emissões per capita de elevados emissores''.

Mitos

O autor destaca que o senso comum econômico diz que casais pobres muitas vezes preferem ter vários filhos para compensar a alta mortalidade infantil, fornecer mão de obra para aumento da renda familiar e cuidar dos pais quando eles estão mais velhos, fatores que, endossados por agumentos religiosos e culturais, reforçam a aceitação de grandes famílias.

Mas ele afirma que ''os economistas tendem a ignorar o fato de que relações sexuais no período fértil são mais freqüentes do que o mínimo necessário para ter concepções intencionais. Portanto, ter uma família maior em vez de uma menor é menos uma decisão planejada do que um resultado automático da sexualidade humana''.

Para Guillebaund, ''algo precisa ser feito para separar o sexo da concepção - ou seja, a contracepção''. Mas ele acrescenta que o acesso à contracepção é muitas vezes difícil, devido a abusos por parte de maridos, parentes, autoridades religiosas ou até ''lamentavelmente'' fornecedores de anticocepcionais.

O editorial afirma que a demanda por anticoncepcionais aumenta quando eles se tornam acessíveis e quando as barreiras à sua obtenção são derrubadas, acompanhadas de informações apropriadas relativas à sua segurança e uso.

O autor procura derrubar algumas crenças e reforçar outras que haviam sido desacreditadas. Ele lembra que no século 18, Malthus previu que com o aumento significativo da população, a escassez de alimentos seria inevitável.

E que a chamada ''revolução verde'', idealizada pelo agrônomo americano Norman Borlaug, aparentemente provou que Malthus estava errado, mas que o significativo aumento populacional vem levando a uma escassez de alimentos sem precendentes, à escalada de preços e a protestos violentos.

Guillebauns enfatiza ainda que das inovações da ''revolução verde'', como o amplo uso de fertilizantes, pesticidas, tratores e transporte, hoje também contribuem para o aquecimento global, uma vez que dependem de combustíveis fósseis.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Terramoto de Longa Duração

Visao |
Boaventura Sousa Santos Quarta-feira, 23 de Julho de 2008



O fim de um sindicalismo independente e o agravamento caótico do protesto social beneficiará exclusivamente ao Clube dos Bilionários

Um terramoto está a assolar a Europa. Não é detectável nos sismógrafos convencionais porque tem um tempo de desenvolvimento atípico. Não ocorre em segundos se não em anos ou talvez décadas. Consiste na convulsão social e política que vai decorrer da destruição progressiva do chamado modelo social europeu uma forma de capitalismo muito diferente da que domina os EUA assente na combinação virtuosa entre elevados níveis de produtividade e elevados níveis de protecção social, entre uma burguesia comedidamente rica e uma classe média comedidamente média ou remediada; na eficácia de serviços públicos universais; na consagração de um direito ao trabalho que, por reconhecer a vulnerabilidade do trabalhador individual frente ao patrão, confere níveis de protecção de direitos superiores aos que são típicos no Direito Civil; no acolhimento de emigrantes baseado no reconhecimento da sua contribuição para o desenvolvimento europeu, e das suas aspirações à plena cidadania com respeito pelas diferenças culturais.

A destruição deste modelo é crescentemente comandada pelas instituições da União Europeia e pelas orientações da OCDE. Três exemplos recentes e elucidativos. A directiva europeia que permite o alargamento da semana de trabalho até às 65 horas. A chamada directiva de retorno, que permite a detenção de imigrantes indocumentados até 18 meses, incluindo crianças, o que virtualmente cria o delito de imigração. As alterações ao Código do Trabalho em vias de serem aprovadas no nosso país, cujos principais objectivos são: baixar os níveis de protecção ao trabalhador consagrados no Direito do Trabalho, já de si baixos pelos níveis de violação consentida; transformar o tempo de trabalho num banco de horas gerido segundo as conveniências da produção, por maiores que sejam as inconveniências causadas ao trabalhador e à sua família, com o objectivo de eliminar o pagamento das horas extraordinárias; desarticular o movimento sindical através da possibilidade da adesão individual às convenções colectivas por parte de trabalhadores não sindicalizados, o que abre as portas a todo o sindicalismo dependente e de conveniência.

Há em comum nestas medidas dois factos que escapam por agora à opinião pública. O primeiro é que, ao contrário do que aconteceu na legislação europeia anterior, a actual visa harmonizar por baixo, transformando os países mais repressivos em exemplos a seguir.

O segundo é o objectivo de fazer convergir o modelo capitalista europeu com o norte-americano. A miragem das elites tecno-políticas europeias muitas delas formadas em universidades norte- -americanas é que a Europa só poderá competir globalmente com os EUA na medida em que se aproximar do modelo de capitalismo que garantiu a hegemonia mundial deste país durante o século XX.

Trata-se de uma miragem porque concebe como causas dessa hegemonia o que os melhores economistas e cientistas sociais dos EUA concebem hoje como causas do seu declínio, fortemente acentuado nas duas últimas décadas.

A transformação do trabalhador num mero factor de produção e a transformação do imigrante em criminoso ou cidadão-fachada, esvaziado de toda a sua identidade cultural, são as duas fracturas tectónicas onde está a ser gerado o terramoto social e político que vai assolar a Europa nas próximas décadas.

Vão surgir novas formas de protesto social desconhecidas no século XX. A vulnerabilidade do Estado será visível em muitas delas, tal como aconteceu com a greve de camionistas, vulnerabilidade reconhecida por um primeiro-ministro cuja eventual ignorância da história contemporânea foi compensada pela intuição política: foi a greve de camionistas que precipitou a queda do governo de Salvador Allende.

A quem beneficiará o fim de um sindicalismo independente e o agravamento caótico do protesto social? Exclusivamente ao Clube dos Bilionários, os 1125 indivíduos cuja riqueza é igual ao produto interno bruto dos países onde vive 59% da população mundial.

http://aeiou.visao.pt/Opiniao/boaventurasousasantos/Pages/Terramotodelongaduracao.aspx

Alimentar o Cérebro

PATRÍCIA JESUS

Estudo. Um professor de Neurocirurgia da Universidade da Califórnia analisou mais de 160 estudos sobre como o que comemos afecta o nosso cérebro e concluiu que há alimentos que funcionam como remédios: melhoram o desempenho e ajudam a conservar a memória
O que comemos influencia o desempenho do nosso cérebro. A conclusão foi revelada por um professor da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, que passou em revista 160 estudos sobre como os alimentos afectam o cérebro para fazer o mais completo guia sobre a influência da dieta na nossa capacidade cognitiva e memória.

No estudo publicado na edição de Julho da Nature Reviews Neuroscience, Fernando Gomez-Pinilla conclui que alguns alimentos têm efeitos tão importantes que são "como medicamentos". "A dieta, o exercício físico e o sono têm o potencial para alterar a saúde do nosso cérebro. Isso deixa no ar a excitante possibilidade de introduzir mudanças como uma estratégia para melhorar as nossas capacidades cognitivas, proteger o cérebro de danos e contrariar os efeitos do envelhecimento", explica.

Os ómega 3, por exemplo, melhoram a aprendizagem e a memória e ajudam a combater doenças como a depressão, a esquizofrenia e a demência, diz o professor. Estes ácidos gordos, que podem ser encontrados em peixes como o salmão, nas nozes e nos quivis, contribuem para a flexibilidade das ligações sinápticas no nosso cérebro, fundamentais para a aprendizagem.

Outra conclusão do trabalho do norte-americano é que os antioxidantes são essenciais para o cérebro porque este é particularmente sensível aos danos resultantes da oxidação - como consome muita energia gera muitos químicos oxidantes. Além disso, o tecido cerebral contém muito material sujeito à oxidação, sobretudo as membranas gordas das células nervosas. E também há alimentos que ajudam a afastar alguns tipos de depressão: o ácido fólico funciona como estabilizador do humor, por exemplo.

Os efeitos dos alimentos no cérebro são tão profundos que a saúde mental de muitos países pode ser relacionada com a alimentação tradicional, diz o cientista. Por exemplo, a curcumina, presente no açafrão, reduz os problemas de memória nos animais com danos cerebrais. Acontece que o açafrão é um dos principais ingredientes do caril, muito consumido na Índia, onde a incidência de Alzheimer é menor do que no resto do mundo. Coincidência? Muitos cientistas acham que não.

Assim, comer bem é tão importante para a saúde mental como para manter um coração saudável, alerta Gomez-Pinilla. Só não convém comer de mais.

http://dn.sapo.pt/2008/07/22/ciencia/alimentar_o_cerebro.html

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Serenamente No Centro Do Furacão

João César das Neves
professor universitário
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
Na próxima sexta-feira passa o 40.º aniversário de um dos documentos mais controversos e gestos mais corajosos do nosso tempo. A 25 de Julho de 1968 o Papa Paulo VI publicou a encíclica Humanae Vitae sobre a regulação da natalidade. Dois meses após o Maio de 68 e três anos depois do Concílio Vaticano II, a sociedade e a Igreja encontravam-se em grande turbulência. Vivia-se a revolução sexual, com a pílula contraceptiva transformando os costumes.

Papa João XXIII nomeara em 1963 a Comissão para o Estudo dos Problemas da População, da Família e da Natalidade, com teólogos e leigos, para lidar com estas questões.

O memorando final, de Junho de 1966, mostrava a Comissão dividida sobre a permissão do uso da pílula pelos casais católicos, com a maioria a favor. O Papa, após dois anos de reflexão, determinou na encíclica a posição da Igreja.

O que fez foi reafirmar a doutrina cristã. Analisando cuidadosamente o diálogo de amor dos esposos, a paternidade responsável e os "dois significados do acto conjugal: o significado unitivo e o significado procriador" (12), afirma que "quem reflectir bem, deverá reconhecer que um acto de amor recíproco, que prejudique a disponibilidade para transmitir a vida que Deus Criador de todas as coisas nele inseriu segundo leis particulares, está em contradição com o desígnio constitutivo do casamento e com a vontade do Autor da vida humana. (...) Pelo contrário, usufruir do dom do amor conjugal, respeitando as leis do processo generativo, significa reconhecer-se não árbitros das fontes da vida humana, mas tão-somente administradores dos desígnios estabelecidos pelo Criador" (13).

O Papa estava bem consciente da controvérsia que iria gerar. "A doutrina da Igreja sobre a regulação dos nascimentos, que promulga a lei divina, parecerá, aos olhos de muitos, de difícil, ou mesmo de impossível actuação (...) Mas, para quem reflectir bem, não poderá deixar de aparecer como evidente que tais esforços são nobilitantes para o homem e benéficos para a comunidade humana" (20). Acima de tudo afirma a certeza que "a Igreja não foi a autora dessa lei e não pode portanto ser árbitra da mesma; mas somente depositária e intérprete, sem nunca poder declarar lícito aquilo que o não é, pela sua íntima e imutável oposição ao verdadeiro bem comum do homem" (18).

Após 40 anos, pode ajuizar-se com rigor a posição então tomada. Ao contrário das previsões da época, não se verificou a debandada dos cristãos e a derrocada da Igreja. É verdade que muitos casais praticantes não seguem este ponto da doutrina, como ao longo dos séculos milhões de católicos disseram mentiras, faltaram à missa ou desviaram fundos. O pecado dos homens não invalida a verdade da Fé. Deve dizer-se que estes anos confirmaram bem essa verdade e a ponderada decisão de Paulo VI.

A clarividência de um grande Papa previu "as consequências dos métodos da regulação artificial da natalidade".

Sobretudo "o caminho amplo e fácil que tais métodos abririam à infïdelidade conjugal e à degradação da moralidade (...) perder o respeito pela mulher e, sem se preocupar mais com o equilíbrio físico e psicológico dela, chegue a considerá-la como simples instrumento de prazer egoísta (...) a arma perigosa que se viria a pôr nas mãos de autoridades públicas, pouco preocupadas com exigências morais". (17).

A profecia realizou-se. Em nome da modernidade caiu-se na pornografia em massa, na promoção do aborto, divórcio, deboche e perversão, no descalabro da educação, solidariedade e castidade, no horror da traição, solidão, depressão, suicídio.

A sociedade ocidental, no meio da prosperidade, debate-se com terríveis problemas, da sida ao insucesso escolar e à decadência populacional, que advêm desta suposta revolução sexual.

Na época muitos achavam que estava em causa apenas uma questão menor de simples liberdade e prazer. Mas preparava-se o mais brutal e esmagador ataque à família e à vida da história do mundo. Este texto colocou serenamente a Igreja no centro da questão decisiva da nossa era.

http://dn.sapo.pt/2008/07/21/opiniao/serenamente_centro_furacao.html

sexta-feira, 18 de julho de 2008

O Neoliberalismo É Mais Do Que Um Slogan

João Rodrigues

Durante demasiado tempo, mostrando o provincianismo e o preconceito que ainda marcam o debate das ideias em Portugal, muitos foram os que consideraram que a expressão neoliberalismo não passaria de um slogan sem qualquer dignidade intelectual, usado apenas pela "extrema-esquerda" para efeitos de propaganda.

No entanto, um olhar de relance por alguma literatura académica, sobretudo anglo-saxónica, nas áreas da economia política, da sociologia, dos estudos de desenvolvimento ou da história das ideias facilmente revela que este termo é há muito usado de forma rigorosa e bem fundamentada.

Para além da ênfase nos processos de privatização, de liberalização financeira e comercial ou de desregulamentação das relações laborais, uma das dimensões que tem sido recentemente sublinhada nos estudos sobre o neoliberalismo, como conjunto de ideias que inspiram as políticas públicas, é a sua aposta numa profunda reconfiguração do Estado e das suas funções. O objectivo, sobretudo nos países mais desenvolvidos, é agora encontrar soluções institucionais e de financiamento que favoreçam a progressiva entrada dos grupos privados nas áreas tradicionais da provisão pública, associadas não só ao chamado Estado Social (saúde, educação ou segurança social), mas também à gestão e controlo de equipamentos e infra-estruturas públicas. Usar o Estado e os recursos financeiros que este controla para abrir novas áreas de negócio, onde os lucros estão relativamente garantidos, é a orientação de fundo. A célebre questão da redução da sua dimensão (em termos, por exemplo, do peso das despesas públicas no PIB), ao contrário de alguma retórica neoliberal, nunca foi realmente central para este projecto de transformação.

Como sempre, o capitalismo anglo-saxónico aponta o caminho. Um estudo governamental recente revelou que um terço dos serviços públicos britânicos (representando quase 6% do PIB) já é assegurado pelo nebuloso "terceiro sector" e, sobretudo, pelo sector privado (Financial Times, 10/07/2008). Da gestão de serviços sociais, à provisão de serviços de saúde ou de educação, são muitas as oportunidades de negócio agora disponíveis numa área em rápida expansão. Esta é crescentemente dominada por empresas multinacionais que, obviamente, se constituem como poderosa força de pressão para a continuação deste processo.

Um dos mecanismos fundamentais na neoliberalização do Estado é, assim, a crescente separação entre o financiamento e a provisão, ou seja, os recursos que são de todos passam a ser canalizados para a provisão, crescentemente privada, dos bens e serviços que serão, por enquanto, usufruídos por quase todos, embora se vá alargando – porque afinal é de engenharia mercantil que estamos a falar – o princípio do utilizador-pagador e se vá corroendo a ideia de provisão pública universal e do éthos igualitário que lhe subjaz. A direcção do plano inclinado, aberto politicamente e mantido ideologicamente pela retórica das virtudes ilimitadas da empresa privada, da concorrência e da escolha individual, é então clara: aproximar-nos, tanto quanto possível, da utopia de uma sociedade reduzida ao nexo mercantil. Este objectivo, esta "mercadorização" de esferas crescentes da vida, envolvendo agora opacas parcerias público-privadas, complexas subcontratações ou dispendiosos subsídios e incentivos fiscais, requer um activismo estatal permanente e constante e, dados os custos de transacção envolvidos nos contratos a desenhar, avultados recursos públicos. O Estado forte é, então, parte integrante do neoliberalismo. Nos países com Estados fracos, caso de Portugal, estas transformações são simplesmente muito mais predatórias e a sua perversidade socioeconómica, paradoxalmente, torna-se muito mais rapidamente visível.

O aumento das desigualdades e a desestruturação social que isto gera, em conjugação com o esvaziamento progressivo do Estado Social assente na provisão pública universal, têm levado, em muitos dos países desenvolvidos onde estes processos foram mais longe, como é o caso do Reino Unido, a um reforço das áreas de actuação do Estado associadas à repressão e à punição, ou seja, à emergência e reforço do que o sociólogo Loïc Wacquant chamou o Estado Penal. Não é por acaso que o mesmo Reino Unido tem assistido a um fulgurante aumento da sua população prisional. É claro que as prisões, agora também geridas por privados, podem ser um excelente negócio…

Via: http://www.jornaldenegocios.pt/index.php?template=SHOWNEWS_OPINION&id=324086

Nota: já sei que os neoliberais vão dizer que não, que o que eles realmente querem é reduzir o «monstro». Se calhar até são capazes de invocar o nome dos santos da casa. F. A. Hayek pode vir à baila. Desculpem a obsessão, mas não é em vão que se está investigar este economista político neoliberal (ele até usa a expressão algumas vezes...). Pois bem, foi Hayek que afirmou: «é o carácter e não o volume da actividade governamental que é importante» visto que «uma economia de mercado funcional pressupõe certas actividades por parte do Estado» (Constituição da Liberdade, 1960, p. 194). Quais? Onde é que se traça a linha? As que forem necessárias, onde for preciso, para servir os interesses das elites e acabar com todos os «atavismos» socialistas. Desde Pinochet até Bush, passando por Thatcher ou por Reagan, que é, na prática, assim. Muita, digamos, flexibilidade. De resto, acho que há muito menos diferenças entre as teorias e as práticas do que se diz.

Via: http://www.ladroesdebicicletas.blogspot.com/

segunda-feira, 30 de junho de 2008

A Lição do Zimbabwe

Mário Crespo

Um dos primeiros actos do Governo eleito de Robert Mugabe, em 1980, foi chamar a Salisburia (a capital só mudou de nome dois anos depois) delegações do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional para estruturar uma economia viável para o país.

Apesar do desgaste causado por década e meia de guerra de libertação, o Zimbabwe tinha chegado à independência mantendo a posição de maior produtor africano de milho. Atestando o reconhecimento da importância da estabilidade da actividade agrícola no primeiro Governo de Mugabe, a pasta da agricultura e planeamento foi entregue a um agricultor branco.

O FMI recomendou que a prática centenária, que vinha desde a administração colonial de Cecil Rhodes, de reter como reserva estratégica um ano de produção de cereais, fosse descontinuada. Nesse ano de independência, o excesso de produção tinha sido historicamente alto. Para os reguladores do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional o que havia a fazer era vender a reserva estratégica de cereais, já que o preço do milho, em 1980, estava em alta histórica. O dinheiro obtido deveria ser usado para reduzir o défice. Adicionalmente, os peritos de Washington insistiram com o novo Governo que nos planos para futuras campanhas agrícolas mais terreno fosse dedicado à cultura do tabaco e menos ao milho, uma vez que os excessos de produção de cereais eram desnecessários e o FMI previa que as cotações do tabaco subissem. E assim foi feito. Com as contas equilibradas, algo nunca visto na África subequatorial, sem milho de reserva, com um plano governamental de subsídios para a conversão de milho em tabaco e com o aplauso dos conselheiros de Washington, o Zimbabwe inaugurou a sua vida de país independente. Mas o FMI estava errado. O preço do tabaco não subiu e 1980 inaugurou um ciclo de seca na África Austral que iria durar mais de uma década. De exportador de milho, o Zimbabwe passou a ter que o importar para satisfazer o consumo interno. O milho híbrido dos Estados Unidos ganhou mais um cliente em África e o Zimbabwe entrou para o rol dos países africanos onde a fome e a instabilidade política são crónicas.

De uma situação de quase pleno emprego, o Zimbabwe passou a ter hordas de descontentes a pressionar os comités políticos para que lhes dessem um benefício palpável da independência. O poder político optou por uma reforma agrária impiedosa, que acabou por destruir o que restava do sector agrícola nacional que está hoje reduzido à indigência. Para aplacar a poderosa ala militar da Zanu, ela também a manifestar perigoso descontentamento, Mugabe apostou no saque à mão armada do Congo, numa confusa aliança militar paga em diamantes e petrodólares, dinamizada por José Eduardo dos Santos a coberto de um suposto apoio ao Governo de Kabila. A situação mantém-se há uma década com total cumplicidade da União Europeia. O drama que hoje se desenrola no Zimbabwe é consequência de tudo isto e a saída de Mugabe da cena vai ser apenas uma parte da solução. O resto está numa alteração profunda de paradigmas de desenvolvimento que aceitem que o bem-estar nem sempre é uma função meramente contabilística de défices orçamentais e balanças de pagamentos. E esse não é um problema exclusivo do Zimbabwe.

http://jn.sapo.pt/Opiniao/default.aspx?opiniao=M%E1rio%20Crespo

domingo, 29 de junho de 2008

Painéis Solares

Painéis solares que funcionam à noite e com chuva


ILÍDIA PINTO
Ecologia. Empresa da Póvoa de Varzim fabrica painéis únicos no mundo. Funcionam em todas as condições atmosféricas e concedem à Energie uma quota de 60% do mercado nacional
Sistema já chegou ao Convento das Carmelitas de Fátima
Ser tão intensamente requisitado por meios tão distintos como a muito conceituada revista norte-americana de economia, finanças e negócios Forbes, ou a TV Globo, a quarta maior emissora do mundo, vista diariamente por 80 milhões de pessoas, não lhe muda a forma de estar. Luís Rocha, presidente da Energie, recebe os jornalistas de sorriso aberto. Esta é a única empresa no mundo que fabrica painéis solares termodinâmicos que funcionam nos dias de chuva e, até, à noite.

Fundada em 1986, a empresa é detentora exclusiva da patente e fabricante dos sistemas solares termodinâmicos. Uma patente que lhe vale já hoje uma quota de 60% do mercado nacional e a entrada nos mercados europeus a uma velocidade de algum modo surpreendente, que não estava nas estratégias da empresa. O resultado é que, a exemplo dos media, também ao nível das encomendas as solicitações são mais que muitas.

A diferença dos painéis termodinâmicos face aos tradicionais reside no facto de a água que circula nos painéis tradicionais ter sido substituída por um líquido ecológico frigorigéneo (é designado por Klea ou pelo nome científico de R134a e corresponde ao mesmo usado nos frigoríficos ou aparelhos de ar condicionado), que assegura o processo baseado no princípio do físico francês Nicolas Carnot, que descobriu a termodinâmica em 1840. É assim que os painéis solares termodinâmicos captam o calor do Sol, da chuva e do vento, 24 horas por dia. Os painéis tradicionais dependiam da existência de luz e sol, o que no Inverno é limitado.

"A grande vantagem ambiental da utilização dos nossos painéis está na emissão de dióxido de carbono. Eles não produzem efeitos nocivos para a natureza. Um sistema de 300 litros de águas quentes sanitárias para uma família reduz a emissão de CO2 em 2,6 toneladas ao ano face às outras energias", sublinha Luís Rocha. E lembra que há, ainda, as vantagens acrescidas da redução do consumo energético global e a consequente diminuição da factura energética do agregado. "A sociedade tem de evoluir para a utilização racional da energia. A energia mais renovável é a que não consumimos e as pessoas têm de se mentalizar disso", refere.

Há muitas formas de poupança, reconhece o empresário. E, por isso, a própria indústria "está a responder paulatinamente a essa necessidade de redução dos consumos", apostando na melhoria das perfomances dos equipamentos. "O futuro passa por aí", sustenta.

Para uma família de seis elementos, é possível obter um sistema Energie por dois mil euros, diz Luís Rocha. "Pode ir um pouco acima, aos três mil, 3500 euros, se utilizarmos termoacumuladores de aço inoxidável, com durabilidades que podem ir aos 20 ou 30 anos", acrescenta. Espanha, França, Irlanda, Grã-Bretanha e Bélgica são os mercados onde os painéis Energie já são vendidos. A exportação arrancou há apenas dois anos mas representa já 40% da facturação.

O Empreendimento Ponte da Pedra, em São Mamede de Infesta, Matosinhos, foi distinguido com o prémio de Eficiência Energética 2007, atribuído pela Direcção-Geral de Energia e dos Transportes da Comissão Europeia, graças aos 132 painéis Energie. Tornou-se o primeiro empreendimento cooperativo de construção sustentável em Portugal. Mas os sistemas da empresa estão já em funcionamento em complexos hoteleiros, shoppings, restaurantes, escolas, etc. O mais emblemático foram os 70 painéis colocados no Convento das Carmelitas, em Fátima. |

http://dn.sapo.pt/2008/06/29/sociedade/paineis_solares_funcionam_a_noite_e_.html

Inovações "made in India"

Miguel Pina e Cunha
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Uma das diferenças mais salientes entre os processos de desenvolvimento em curso na China e na Índia diz respeito ao papel da inovação e do conhecimento. Se a China tem vivido da vantagem de custo, apesar da recente tentativa de subida na cadeia de valor, na Índia a mudança tem uma base de conhecimento que interessa considerar.


A sofisticação desse conhecimento, cada vez mais notória, tem-se revelado num conjunto de inovações de gestão que vão surpreendendo o mundo. Neste texto, são destacadas duas ideias aparentemente simples mas dotadas de um considerável impacto potencial: o carro "low cost" e a exploração da base da pirâmide.

Uma das mais conhecidas inovações "made in India" é o já famoso Nano, o carro "low cost", anunciado em Janeiro deste ano pelo gigante Tata Motors. A reacção a este movimento foi vigorosa. Os ambientalistas entraram em pânico, com a perspectiva da chegada às estradas de mais umas centenas de milhares de automóveis. Como se não bastassem os Nano, perspectiva-se também a entrada em cena de um modelo equivalente produzido pela parceria Renault/Nissan/Bajaj. O crescimento previsto nas vendas de utilitários de passageiros na Índia é de 13%. De algum modo, o Nano representa uma nova versão, oriental, do velho sonho de Henry Ford, o de proporcionar um carro a cada família. Ao pensar um automóvel à medida de muitos consumidores do subcontinente, a Tata mostra como continuam a existir ovos de Colombo por desencantar no mundo do negócio.

O processo de exploração que conduziu ao desenvolvimento do Nano não é muito diferente de outra noção que vai adquirindo popularidade: a base da pirâmide. A base da pirâmide refere-se à ideia de que as empresas devem competir para satisfazer as necessidades dos consumidores pobres. Vários acontecimentos contribuíram para a atenção que o tema tem merecido no passado recente, mas dois foram particularmente salientes:

l A publicação, em 2005, do livro de C.K. Prahalad, Fortune at the Bottom of the Pyramid. Prahalad, um importante investigador da Universidade de Michigan e co-autor do célebre Competing for the Future, apresenta as populações pobres como um mercado potencialmente interessante desde que abordado da forma correcta. As empresas mais atentas a este mercado começaram de resto a explorá-lo, por vezes em parceria com ONG com forte conhecimento das especificidades locais. A reinvenção de produtos, mercados e negócios, é uma possibilidade assumida pela ideia de que é possível melhorar a condição humana com a economia de mercado.

l A popularidade granjeada a Muhamad Yunnus pela atribuição do prémio Nobel da Paz. O caso de Yunnus e do seu Grameen Bank, é bem conhecido, pelo que basta recordar o seu papel no desenvolvimento do microcrédito e a sua atitude anti-caridade.

Mas quem está afinal na "base da pirâmide"? De acordo com o relatório Os Próximos Quatro Mil Milhões, da IFC (Corporação Financeira Mundial) e do Instituto dos Recursos Mundiais, publicado em Março de 2007, trata-se de 4.000.000.000 de pessoas que vivem com um, dois ou três dólares por dia. Representam 60% da população mundial. 5.000.000.000.000 de dólares é o valor do poder de compra agregado destas populações pobres. Os desafios para as empresas são diversos, desde a oferta de produtos de qualidade a baixo preço, à construção de infra-estruturas capazes de sustentar o crescimento e o desenvolvimento humano. A exploração da base da pirâmide comporta um enorme potencial de destruição criativa. Inovações simples podem produzir resultados comerciais muito significativos. Escusado será dizer que estas ideias estão já a ser exportadas da Índia para outros países com consumidores pobres, cuja qualidade de vida pode ser melhorada com a descoberta de pequenas inovações capazes de produzir grandes efeitos e de pôr a poderosa força de resolução de problemas que é a economia de mercado ao serviço do combate à pobreza.

http://www.jornaldenegocios.pt/index.php?template=SHOWNEWS_OPINION&id=321774

terça-feira, 24 de junho de 2008

Ridicula Europa

Sílvia de Oliveira
Numa entrevista que deu este fim-de-semana ao jornal francês “Journal du Dimanche”, Jacques Delors enfiou o dedo na ferida.

O antigo presidente da Comissão Europeia defendeu a criação urgente na Europa de um mercado comum de energia e uma atitude concertada em relação aos grandes países produtores. Na sua opinião, a escolha é simples - “a sobrevivência pela união ou o declínio e a perda total da capacidade de influência”. A máxima da união aplica-se a quase tudo, mas na actual conjuntura, é à política de energia que serve que nem uma luva. As palavras ácidas de Jacques Delors são, por isso, de uma assertividade única: “Quando vejo este carrossel de países em torno de Putin e Medvedev, fico indignado. A Europa torna-se ridícula”.

O mundo está mergulhado num choque petrolífero que nos faz olhar para as anteriores crises como inocentes brincadeiras de crianças; e assiste-se a uma revolução do mapa geo-estratégico internacional, motivado também pela meteórica ascensão de novas potências económicas, como é o caso da Rússia. Isto, a juntar ao fim anunciado do reinado do petróleo como fonte de energia - será só uma questão de tempo -, sobra para dar uma nova e preocupante dimensão à enorme dependência energética da Europa e dos Estados Unidos.

É então caso para perguntar, parafraseando Jacques Delors, se não estará já a Europa a ser completamente ridícula ao embrenhar-se na discussão de uma constituição europeia, quando nem sequer se consegue entender sobre uma política sectorial? Não deveria a Europa, como sugere o antigo presidente da Comissão Europeia, voltar a estudar o velho Tratado de Paris, que deu origem à CECA (Comunidade Europeia do Carvão e do Aço), ao mesmo tempo que consome energia no Tratado de Lisboa, vítima de vários ataques, o último dos quais liderado pela Irlanda? Deveria, só que a energia não é um negócio qualquer, é um sector estratégico, no seu significado mais lato, sendo aqui também a questão da perda de soberania o que verdadeiramente está em causa. Não é, aliás, por acaso que a França de Jacques Delors se empenha em engordar a sua Electricité de France (EDF), um colosso europeu com um apetite desmedido, considerando as sucessivas tentativas de compras, as mais recentes em Espanha ou Inglaterra. E isso o antigo presidente da Comissão Europeia não disse. Também não é coincidência que a Alemanha tenha alimentado exactamente a mesma política em relação à E.ON e à RWE. Pois é. Afinal, os dois países que em 1951 aceitaram integrar os respectivos mercados do aço e do carvão, transferindo direitos de soberania dos seus Estados para uma instituição europeia, estão agora, passados tantos anos, de costas voltadas. Qualquer projecto de união na energia fica-se pelas palavras bonitas. Há mais de 50 anos, o objectivo da criação da CECA era o de evitar uma nova Guerra Mundial. Hoje, o medo parece esgotar-se num apagão caso a Rússia decida voltar a fechar os seus ‘pipelines’. Ridícula Europa, é muito mais do que isso. Declínio, disse Delors.
http://diarioeconomico.sapo.pt/edicion/diarioeconomico/opinion/editorial/pt/desarrollo/1138370.html

Comentários

vg
Ridículo é o sr Delors, que nunca conseguiu meter os dois maiores produtores europeus (Noruega e UK) na partilha europeia.E os egoísmos nacionais ,que nem conseguem pôr o já "decidido" Mibel em funcionamento,nem o cruzamento de participações accionistas ao longo da Europa.Este homens ,quando estão a cair da tripeça, sabem tudo.Tambem temos cá um...Que tem isto a ver com o Tratado de Lisboa?...

NapoLeão
E alguma vez o nosso mui ilustre Barroso aceitará um conselho de Delors ?É mais fácil o Benfica ser campeão europeus, 5 anos seguidos, do que a Europa parar para pensar !!!

SAMOT
Não há dúvida: os políticos devem saber distinguir o que é prioritário do que não é prioritário,neste caso a nível da UE.Pode haver Tratado de Lisboa, pode, mas se a UE não for capaz de resolver a «crise» energética o Tratado de Lisboa de nada lhe valerá. É isto não é? É.

jcabrita
Tem toda a razão mestre Delors. Enquanto cada pais olhar única e exclusivamente para o seu umbigo sem pensar nos outros a equipe nunca vai funcionar, e há quem esfregue as mãos de contente com isso.

jose pires
Até que enfim ,que um dos "iluminados" da Europa acordou, e já coméça a dizer "...que o Rei vai nú...",e se a Europa continuar por este caminho,ela com certeza auto anula-se,pois quando os Estados Europeus viram as costas á vontade das populações,estão a destruir a base do fundamento da U.E. ,a igualdade entre os povos ,e se isso não é respeitado,o destino da U.E. é a dissolução ,disse...

Jose
Parabéns. Excelente artigo. E o MIBEL que era uma prioridade de Barroso, Sócrates e tutti quanti?

Bailarina
Este Delors é mais um "guru" que ficou para a história como tal num período de "vacas gordas"...

Tanto mar
Em vêz do TGV apressado mas vazio, o investimento público e privado não deveria ser ainda mais rápido e cada vez mais alinhado pela velocidade da luz das energias verdes e azuis e mesmo um pouco mais alaranjadas como a nuclear? Talvez assim ainda pudessem restar algumas lampadas acesas às próximas gerações que por este andar poderão têr de usar lamparinas com cêra de abelhas ou de cebo de vacas.

Juca
O egoismo ente Alemaes e Ingleses causou duas grandes guerras mundiais.O egoismo dos paises da UE e em especial os da Gra Bretanha,Franca e Alemanha esta a travar o avanco da Europa.E grandes ameacas estao a surgir no mundo:China,India e Russia.Tenho serias duvidas de que os Europeus serao capazes de ultrapassar as grandes dificuldades.Sem os EUA a Europa hoje seria um imperio nazi ou comunista.

Mrrm
Durante o consulado de Delors (3 Comissões), na II comissão, foi assinada a Carta da Energia e o Comissário com a pasta era Cardoso e Cunha. Fizeram o que fizeram, num tempo em que as prioridades eram a preparação da U. Monetária e o alargamento a Leste. As propostas que se ouvem no seio da UE sobre energia vão desde o patético (sobre-imposto sobre o lucro das petrolíferas, excelente para aumentar mais o preço) até às parvoíces pegadas de Sarkozy, distraído com assuntos, convenhamos, bem mais apelativos. Quem lidera o processo, mas a partir duma base política frágil (não foi eleito) é Gordon Brown e, até ver, o Congresso (Senado e Cam. dos representantes) dos EUA, já que o problema é mundial. Agora a jornalista escrever que as anteriores crises da Europa foram brincadeiras de crianças...bem, ainda ontem vi o que sofreram os páras da 101º ao tentarem libertar a Holanda dos nazis. De certeza que os veteranos que lembram os seus mortos e os do inimigo têm uma opinião diferente. Só ali naquela batalha (operação Market Garden) combateram e morreram ingleses, americanos, alemães, holandeses e polacos. Não brinque é a senhora com o sangue de quem os libertou. O tema é bem escolhido e bastante quente, mas dispensa este género de infantilidades de muito mau gosto. MMartins-Sintra

Harf
O negocio da energia é muito mais que estratégico,é crucial.Com os tristes políticos que nos governam Putin,astuciosamente, vai fazer da Europa aquilo que a ameaça militar soviética nunca pôde.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Natureza

Alguém se lembra do pânico que se gerou em Portugal quando um ministro admitiu que a água podia vir a ser racionada no Algarve caso não chovesse com abundância no Inverno de 2004/2005? Afinal choveu e o governo do ministro até foi levado na enxurrada.

Mas será que ficou resolvido o problema da água no Algarve? Volto ao assunto, um dia depois, porque uma notícia do “Público” lhe confere a maior actualidade. Embora, para actualidade da questão bastasse, por exemplo, o tema da Expo de Saragoça, a água, num país, a Espanha, que está a ser tragado pela desertificação.

A notícia do “Público” revelava que 22 dos 23 campos de golfe do Algarve são regados com água potável e apenas um com águas residuais tratadas. Só neste país – e talvez, vá lá, em mais uma ou outra república de bananas – se esbanja desta maneira um bem tão precioso em benefício dos interesses de uma minoria. Aliás, só neste país é que existe, num espaço tão reduzido como o Algarve, uma concentração tão desmesurada de campos de golfe, um tipo de investimento turístico predador do bem inestimável que é a água. E no futuro será pior. Aos 23 campos já existentes vão somar-se mais outros 20 já projectados e aos quais nenhum estudo de impacte ambiental levantará problemas. E assim o Algarve se vai transformando num aglomerado de condomínios de betão, que significam o progresso, e campos de golfe, que representam a natureza.

Os governos passam e os problemas ficam e agravam-se. Há um plano de “medidas prioritárias” para o uso da água em estudo há sete anos. Os governos podem silenciar os buzinões, com medidas repressivas ou com manipulação da informação. Mas quando os recursos da natureza se revoltarem não haverá nada a fazer.

jpguerra@economicasgps.com

http://diarioeconomico.sapo.pt/edicion/diarioeconomico/opinion/columnistas/pt/desarrollo/1136610.html

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Desertificação

Alterações climáticas. Aumento da temperatura nas próximas décadas vai diminuir a disponibilidade de recursos hídricos e ajudar à degradação dos solos, promovendo o avanço da desertificação em Portugal. A floresta de sobreiro pode ter papel-chave para travar o fenómeno

WWF lança alerta contra má gestão florestal

Face às alterações climáticas, que vão agravar-se nas próximas décadas com impactos importantes em Portugal, os montados e florestas de sobreiro terão um papel-chave no combate à desertificação anunciada. Mas para que isso seja possível é necessária uma gestão adequada desta floresta e também a promoção activa da sua progressão para Norte, no território continental do País, "movimento" que o aquecimento da temperatura global vai favorecer nas próximas décadas.

Esta é uma das principais conclusões de um estudo realizado em conjunto pela organização internacional WWF (Fundo Mundial da Vida Selvagem) e pelo centro de investigação em Ecologia Aplicada Professor Baeta Neves (CEABN), do Instituto Superior de Agronomia, e que ontem foi apresentado em Lisboa.

Se as medidas de gestão necessárias não forem tomadas, avisa o WWF, a partir de 2020 a desertificação avançará em Portugal a uma taxa superior a mil metros ao ano. E estas florestas, que são a base de um importante sector económico para o País, entrarão por seu turno em regressão mais acelerada.

A gestão adequada sublinhada pela organização ambientalista passa pela "certificação da qualidade destas florestas, pela criação de programas de protecção integrada contra pragas e infestações e também pela definição de mecanismos de mercado que permitam equiparar estas florestas às restantes no mercado do carbono", explicou ao DN Luís Silva, o coordenador do programa florestal do WWF em Portugal.

Este último mecanismo, que é em parte uma novidade em termos da valorização económica deste tipo de floresta, "é importante para tornar a sua plantação interessante do ponto de vista económico para os seus proprietários", sublinha Luís Silva.

Em relação à certificação da floresta, note-se que actualmente apenas 6% do montado em Portugal é certificado. Elevá-la "para níveis mais significativos" é o o apelo da organização ambientalista.

Sem o conjunto daquelas três práticas articuladas, a regressão desta floresta torna-se inevitável em Portugal. E o WWF até tem essas perdas prováveis contabilizadas, prevendo que a partir de 2020 a densidade e a área florestal desta espécie continuarão a regredir. "40% dos povoamentos vão ter menos de 40 árvores/ hectare e apenas 15% terão mais de 80 árvores/hectare", diz o WWF. Nesse cenário negativo, a taxa de regressão dos montados será de 1% ao ano.

Impedir essa situação, e ao mesmo tempo utilizar estas florestas no combate à desertificação - esta árvore retém níveis mínimos de humidade no subsolo e impede a sua degradação - é a proposta do WWF.

FILOMENA NAVES

http://dn.sapo.pt/2008/06/18/ciencia/montados_podem_travar_desertificacao.html

Deserto

Portugal, um dos três países mais desertificados da Europa, ficou ontem a saber que daqui até 2020 a desertificação pode avançar à razão de mais de 1 km por ano.

Tal como pode ser sustida. Tudo depende de uma gestão adequada dos bosques de sobreiro, cuja importância é considerada fundamental, por organizações globais de defesa da natureza, no combate ao avanço da desertificação. A notícia, porém, segue-se a uma outra dando conta do abate de milhares de sobreiros para abrir caminho à monocultura do olival nas novas ‘fincas’ do sul do Alentejo. Notícias anteriores deram conta do abate de muitos mais sobreiros, neste caso para darem lugar a megaprojectos turísticos, geralmente promovidos pela disponibilidade de campos de golfe, sorvedouros insaciáveis de água.

Também o Algarve anunciou o seu programa de combate à desertificação, ao mesmo tempo que todos os dias são projectados e dia-sim, dia-não são aprovados novos mega-empreendimentos turísticos na região. Claro que tanto os empreendedores como os decisores sabem que basta o elevadíssimo consumo de água dos empreendimentos do turismo massificado e betonado para assegurar o avanço da desertificação. Sendo Portugal um quintal dos interesses, como é que alguém pode pretender travar o caminho inexorável do país para a desertificação? Só por ingenuidade ou por demagogia.

Uma terceira e decisiva mistificação reside em propalar o combate à desertificação e, em simultâneo, promover o despovoamento de vastas regiões do país, a liquidação das actividades locais, a falta de incentivos à fixação de população jovem, o fecho de escolas e de hospitais. As políticas das últimas décadas são o maior adubo da desertificação. E o resto é paisagem.

jpguerra@economicasgps.com

http://diarioeconomico.sapo.pt/edicion/diarioeconomico/opinion/columnistas/pt/desarrollo/1136156.html

terça-feira, 17 de junho de 2008

Referendo

A Europa, berço da democracia, transformou-se no enxergão da hipocrisia.

De acordo com esta alteração de leitos, que culmina muitos séculos de civilização, a democracia só é aceitável quando uma maioria concorda. Discordando, insiste-se quantas vezes foram necessárias até a maioria mudar de opinião. Ou então, simplesmente, a minoria concordante mas governante deita a opinião discordante da maioria para o lixo. Há ainda a modalidade portuguesa: mete-se a promessa da democracia na mesma gaveta onde jazem tralhas como o socialismo.

Os irlandeses chumbaram pela segunda vez um tratado europeu. Desta vez foi o Tratado “porreiro, pá” de Lisboa. No comum das democracias europeias já se aboliu a prática do referendo para questões complexas da governação em relação às quais o povinho não é entendido nem achado. Mas na Irlanda, por um imperativo constitucional – e só por isso – o povo é chamado a pronunciar-se em referendo sobre tratados internacionais. Com péssimos resultados para a democracia de pechisbeque que se cultiva nas instâncias europeias e em cada estado europeu. Fica agora ás escancaras porque razão o Governo português pura e simplesmente rasgou a promessa de submeter o Tratado a referendo.

Agora movem-se já as forças da Europa no sentido de promover novos referendos na Irlanda, tantos até que o povo, cansado, deixe de votar ou vote “sim” porque dizer que sim não faz doer a cabeça. Daqui a uns séculos, os historiadores vão designar com precisão os tempos que vivemos. Talvez qualquer coisa como pós-democracia. Mas nem ficarão para a História os nomes dos trapalhões que substituíram a democracia por esta coisa de plástico que substituiu o voto pelo poder oculto dos burocratas.

jpguerra@economicasgps.com
http://diarioeconomico.sapo.pt/edicion/diarioeconomico/opinion/columnistas/pt/desarrollo/1135665.html

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Trabalhar Até Cair

À tarde, ao chegar a casa, depois de mais uma jornada, o discurso dominante é o de que as empresas devem empenhar-se na necessidade de conciliar a vida laboral com a vida privada; que os países mais produtivos não são aqueles em que se trabalham mais horas; que as empresas modernas se preocupam com o bem-estar dos seus empregados.

De manhã, quando o mesmo trabalhador europeu se prepara para mais uma jornada, o discurso é diferente: vai ser preciso trabalhar mais horas para que as empresas sejam mais competitivas. Ou seja, se não podes vencer as empresas asiáticas, que fazem tábua rasa dos direitos dos trabalhadores, quando não os escravizam, junta-te a elas. A apresentação deste dilema não é original. Lia-a parcialmente no "El País", enquanto gozava de uns momentos de ócio na cálida costa do Sul de Espanha. E foi o direito ao ócio, afinal, que, por estes dias, uma maioria de países da União Europeia decidiu revogar. O limite de 48 horas semanais corre o risco de passar à história. A civilização cede à barbárie e aponta-se agora para as 65 horas. Tempera-se a proposta com o velho engodo da livre escolha ["free-choice" em inglês, como a designam os britânicos que avançaram com a proposta], argumentando que só será assim se o trabalhador quiser. Como se o operário de construção civil que assenta tijolo tivesse algum poder negocial face ao patrão. Ou que os empregados de uma Lear qualquer possam recusar trabalhar mais umas horas pelo mesmo salário, quando a alternativa for entre estar mais algum tempo com os filhos ou manter o emprego. A proposta de directiva foi aprovada no Conselho Europeu de Ministros do Trabalho e dos Assuntos Sociais, mas ainda não é letra de lei. Terá de passar, primeiro, pelo crivo do Parlamento Europeu. E depois por uma decisão de cada um dos países. Em Espanha, pelo que li, Zapatero já prometeu que não aceitará "dinamitar" o Direito do Trabalho. Calculo que em Portugal a posição seja semelhante. O problema é que, uma vez aprovada e posta em prática, será apenas uma questão de tempo até que se generalize. E chegará a altura em que nenhum Governo quererá perder o campeonato da captação de investimento devido a minudências, já não digo como a do direito ao ócio, mas pelo menos a do direito a um pouco de descanso. Por estes dias, a discussão sobre o futuro da Europa foi sobretudo feita a propósito do "não" dos irlandeses ao moribundo Tratado de Lisboa. E as notícias e comentários de meios de comunicação de todo o continente reflectiram essa obsessão. Não nego que seja matéria relevante, mas pergunto-me se não seria mais importante discutir que modelo de civilização querem os europeus. Já agora, alguém imagina qual seria o resultado de um referendo em que se colocasse a questão do alargamento do horário de trabalho até às 65 horas? Pois, provavelmente não é uma boa ideia…

Rafael Barbosa
http://jn.sapo.pt/opiniao/

O Mundo Lá De Cima, E O Mundo Cá De Baixo

Baptista Bastos
b.bastos@netcabo.pt


O dispositivo de patrioteirismo colocado, com extrema eficiência, por todo o País, sob a benevolente aquiescência de uma Televisão desacreditada, de uma Rádio às aranhas e de uma Imprensa que se perdeu na pobreza moral, está a conduzir, muitos de nós, a um estado próximo da imbecilização.

A instrumentalização do "desporto" por parte do poder político é um fenómeno de que a Antiguidade foi fértil. No contemporâneo, a dimensão adquirida constitui uma obscenidade. Muitas contendas ditas desportivas (no caso vertente: futebolísticas) não passam de esquemas políticos.

À Esquerda e à Direita o recurso a esse enclausuramento mental tolhe qualquer iniciativa antagónica. Porém, a circunstância de, momentaneamente, as vozes críticas serem minoritárias, não significa que elas se calem. Alguns preopinantes pós-modernos acusam de anacronismo aqueles que ainda protestam contra estes mercadores de ilusões, que transformaram (graças a uma campanha impressionante) o Euro-2008 numa questão nacional - ou nacionalista.

E quando Marcelo Rebelo de Sousa admite que o País deve mais a Cristiano Ronaldo do que a qualquer outro, o dito é escandaloso. Primeiro, porque só raramente, no estrangeiro, se associa o nome de Cristiano a Portugal; ligam-no mais, claro está!, ao Manchester. Depois porque a vacuidade da afirmação não está à altura do professor; ou estará? Então e Pessoa, e Vieira da Silva, e Damásio, e Paula Rego, e Manoel de Oliveira, e Júlio Pomar, e Saramago, e Siza Vieira - mais, muitos mais outros? A paranóia colectiva assombra, pela expressão numérica da mediocridade. Rui Santos, jornalista do futebol, chamou-lhe "alienação" e está com carradas de razão.

O mal-estar na sociedade portuguesa é anestesiado por esta catadupa de falsos valores, de falsos princípios, de falsos heróis, de falsas hipóteses, de falso patriotismo. De quantos brasileiros, apressadamente matriculados portugueses, possui a selecção "nacional"? E que motivou esses ternos guerreiros? O dinheiro, bem entendido, que até os levou a abjurar da própria nacionalidade. Há qualquer coisa de podre, de vil e de sórdido nesta doentia instrumentalização.

Há dias, a "Notícias Magazine" publicou um dramático apelo de D. Manuel Martins, primeiro bispo de Setúbal, e figura maior da Igreja. Escreve: "Sou, sem querer, mais uma voz a juntar-me à de tantos e tantos portugueses que vivem mergulhados num grande desânimo quanto ao presente e num grande medo quanto ao futuro. Estes sentires vão-se manifestando um pouco por tudo quanto é sítio, e será muito desejável que se lhes acuda a tempo (…) Portugal não pode esperar mais: os portugueses precisam de trabalho justamente remunerado, precisam de pão na sua mesa, precisam de ver respeitados os seus direitos enganados de saúde, de justiça, de educação, de segurança."

E o documento prossegue: "Espantam-nos, a sério, os dois mundos que se vão construindo em Portugal: o mundo lá de cima, dos ultra-ricos e dos ultra-remunerados, e o mundo cá de baixo, dos pobres e dos ultra-pobres. Até já os da faixa do meio sentem o terreno a fugir-lhes."

É curioso que esta demarcação de D. Manuel Martins coincida com afirmações de D. Manuel Clemente, bispo do Porto, o qual, num debate sobre o Código do Trabalho, realizado na Associação Católica do Porto, declarou, ante a irritação do ministro Vieira da Silva: "As organizações sociais, perseguindo o seu bem específico ao serviço do bem comum, são um factor construtivo de ordem social e solidariedade, portanto um elemento indispensável da vida social (…) Sem pressão sindical poderia acontecer que a administração pública se esquecesse do seu papel."

As vozes destes dois homens foram praticamente ofuscadas pelo alarido futebolístico. Como nada acontece por acaso, convém não atribuir ao "acaso" os infortúnios da razão, que levam quem organiza o escalonamento dos noticiários (nos jornais, nas rádios e nas televisões) a inverter a importância dos factos e a dissimular o carácter político-social dos acontecimentos com a frivolidade, essencialmente mutável, do futebol.

José Sócrates, cuja arrogância começa a ser suicida, desprezou a manifestação dos duzentos mil, e cava, cada vez mais fundo, a separação entre os portugueses. Alguém tem de dizer a este homem que já lhe é difícil arrepiar caminho e dar um torção à Esquerda. Cometeu tropelias, injustiças e incompetências demasiado extensas e graves para que se lhe perdoe. Teve tudo na mão para equilibrar as coisas: até uma certa cumplicidade dos órgãos de informação, fatigados das desditas de Guterres, de Durão e de Santana. Não o fez. Segundo o insuspeito Joaquim Aguiar, ele não estava preparado para dirigir o País.

Tem sido acolitado por um grupo de subservientes, pouco ou nada apetrechados ideológica e culturalmente, que em nada o têm ajudado. Há dias, Vítor Ramalho, começou, ele também, a criticar a governação, e o próprio PS, revelando que não há debate nos "núcleos" socialistas. Recordo que, há anos, o PS dizia o mesmo do PCP, e, ainda recentemente, idêntica acusação foi formulada por sociais-democratas ao PSD. Não há debate nos partidos; não há debate na sociedade. O vazio impera.

Creio que Manuela Ferreira Leite apenas fará algumas mossas na carcaça do Governo. Ao contrário do que dizem os seus turiferários, ela não colhe nem as simpatias da totalidade dos "companheiros", nem a empatia dos portugueses. Um guru tem afirmado o contrário e, inclusive, que a senhora "unirá o partido." Todavia, o Santana não é para graças; o Passos é um pequeno falcão à espera; e Patinha Antão pode ter obtido um resultado escasso, mas (para minha surpresa e de muitos) revelou um sábio conhecimento dos dossiês. Além do que Manuela Ferreira Leite representa o que de mais cediço e arcaico existe na sociedade portuguesa. Não vai resolver nada: vai complicar tudo. E o seu apressado discurso "social" não dissimula a actividade praticada no Governo.

Manuela Ferreira Leite é mais do mesmo, igual a todo o mesmo. É uma soneira. José Sócrates, uma canseira. Como diria o Eça: "Meninos, que ferro!"

http://www.jornaldenegocios.pt/index.php?template=SHOWNEWS_OPINION&id=320134

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