sábado, 19 de abril de 2008

Capitalismo de Pânico

Por Ignacio Ramonet.

Quem pode ainda duvidar? A crise que está contagiando o resto do mundo é já “a mais dolorosa desde o final da Segunda Guerra Mundial”.
Não o afirma qualquer um, mas sim o próprio Alan Greenspan, ex presidente da Reserva Federal estado-unidense. Dois números bastam para dar uma ideia dessa “dor”: Apenas em sessenta dias, as mil principais empresas do planeta perderam 158.000 milhões de euros, isto é, mais que o Produto interno bruto (PIB) anual de países como a República Checa ou Colômbia. E o valor em bolsa dessas mesmas mil grandes corporações, nos últimos oito meses, diminuiu cerca de três biliões de euros, ou seja mais que a soma do PIB anual da Alemanha e Brasil.
A Espanha não está a salvo. A crise dos sectores ligados ao “tijolo” (leia-se, p. 3, o artigo de Aleksandro Pombo Garrido) começa a transferir-se para as entidades financeiras. Segundo o Banco de Espanha, no fecho de 2007, as Caixas de Poupança acumulam já 1.600 milhões de euros em créditos duvidosos concedidos a construtoras e imobiliárias.
E tudo se parece acelerar.
O verão passado, quando rebentou a bolha das hipotecas lixo, a Reserva Federal estimava que as perdas dos bancos elevar-se-iam a uns 100.000 milhões de euros. Hoje calcula-se que se situam entre 200.000 e 300.000 milhões, ainda que diversos analistas considerem que atingem, na realidade, os 600.000 milhões. E alguns peritos até sustentam que o volume real das perdas não é inferior aos dois biliões de euros… . Tão díspares apreciações - do um ao vinte, - dão a verdadeira dimensão da crise, contribuem para agravá-la. Traduzem nervosismo, ignorância. Ninguém parece saber nada, o que enlouquece mais o sistema. E deixa perplexos os cidadãos. Alguns analistas assinalam o seguinte: comparadas com um orçamento familiar ordinário, os números citados podem parecer oceânicos e demenciais. No entanto, referidas à vida ordinária da Bolsa, são por assim dizer normais e banais. Por exemplo, se tomamos o número mais geralmente admitido de 300.000 milhões de euros de perdas, e se o comparamos com o volume do mercado financeiro, representa apenas uma queda de 1% do mercado de acções estado-unidense . Algo que sucede habitualmente em Wall Street. Sem que ninguém se preocupe. E que banqueiros e agentes de carteira absorvem de modo rotineiro.
Por quê então esse grãozinho de areia tem podido engendrar semelhante crise? Porque tem havido tanta especulação e tanto engano, que agora domina a desconfiança. Estendem-se como rasto de pólvora os rumores. E toca o salve-se quem puder. O que não impede, no meio do que começa a parecer um naufrágio, que os abutres financeiros fiquem à espreita. Conduzidos pelo seu instinto predador, sem se importarem com o destino de um sistema que cambaleia. Eles são os culpados da espectacular queda de Bear Stearns, o quinto banco de investimento do mundo. Detalhadamente, o New York Times tem relatado como uma quadrilha de especuladores que o diário qualifica de “Gang de Wall Street” e do qual faziam parte “algumas das pessoas mais poderosas de Wall Street e de Washington”, organizou, em apenas três dias, a queda de Bear Stearns. E, com a cumplicidade da Reserva Federal, favoreceu sua compra - que o jornal chama “latrocínio”- em favor de JPMorgan Chase.
Metodicamente, desde a sede deste banco lançou-se uma campanha de rumores, fazendo questão de uma pretendida falta de liquidez de Bear Stearns. Com telefonemas pessoais a grandes investidores, aterrorizando-os e empurrando-os a retirar de imediato os seus fundos. Em menos de cem horas, o preço da acção afundou-se de 70 para 2 dólares. O presidente de Bear Stearns, Alan Schwartz tratou de lançar uma contra-ofensiva, demonstrando, com documentos e provas, a falsidade dos rumores. Não o conseguiu. O próprio Secretário do Tesouro (equivalente a ministro de Finanças), Henry Paulson Jr, ex director executivo do banco Goldman Sachs e que alguns suspeitam que faz parte da conspiração, interveio junto do presidente de Bear Streans para lhe dar o golpe de misericórdia. Diz o New York Times: “Pôs-lhe o cano da pistola no peito: ‘ou aceitas um acordo com JPMorgan, ou abrimos expediente de bancarrota”.
Dá pânico.
À beira do vulcão, estes especuladores ainda aproveitam a inquietude reinante para obter ganhos, à custa de quem quer que seja. Encarnam a versão mais infernal do capitalismo. E o pior é que fazem escola. Agora, muitos querem cometer o mesmo crime: conseguir que o valor de um estabelecimento bancário, em apenas três dias, se divida por 15. E possa ser adquirido a preço de ganga. Desde então, à base de campanhas de rumores, o valor do banco hipotecário Halifax Bank of Scotland (HBOS), por exemplo, depenou-se em18%. O do Lehman Brothers perdeu 20%. E Union dês Banques Suisses (UBS), atacado também pela especulação, teve que desmentir que esteja a ponto de ser comprado pelo Crédit Suisse.
Os especuladores sabem que arriscam pouco. Estão agora seguros - é a outra lição do assunto Bear Streans - de que, em caso de dificuldade, os Estados intervirão. Porque os Governos têm pânico da possibilidade de que o derrube de um banco, por efeito dominó, seja capaz de afundar o sistema. Faz poucas semanas, renegando a sua fé absoluta no mercado, o Governo britânico viu-se obrigado a nacionalizar o banco Northern Rock. E em muitos países de tendência neoliberal, onde não se cessou de repetir o sagrado mandamento neocon segundo o qual “ainda há demasiado intervencionismo do Estado”, temos assistido a uma multiplicação de intervenções estatais: pacotes de medidas fiscais, redução de taxas de juro, injecções de liquidez, e até nacionalizações. Medidas ruidosamente aprovadas agora pelos críticos de antanho. E todas elas - suprema imoralidade - financiadas pelos contribuintes.
De novo se socializam hoje ou se mutualizam as perdas, enquanto ontem se privatizavam os ganhos e os benefícios. E uma vez mais fica demonstrado que o mercado, por si só, é incapaz de auto-regular-se.
Que espera o Estado para pôr limites por fim a este capitalismo de pânico?
Fonte: desconhecida

A Queda do Dólar

A queda do dólar:aspecto pouco discutido da crise actual

François Chesnais (*)

A situação actual toma agora claramente as características daquilo que os economistas keynesianos ou “regulacionistas” denominam como uma “crise sistémica”. Ela tem numerosas dimensões, das quais três são desde já particularmente importantes. São elas a crise do sistema bancário, a alta nos preços de um crescente número de matérias-primas e a baixa na taxa de câmbio do dólar. Actualmente, é a primeira que tem atraído mais atenções e que é objecto do maior número de intervenções governamentais (em sentido lato, que inclui as dos Bancos centrais “independentes”), sob a forma de baixa das taxas de juros e da criação de nova liquidez. O termo “crise do sistema bancário” designa o enfraquecimento da capacidade de criação de crédito dos bancos. A oferta permanente de crédito comercial e os adiantamentos para investimento representaram, tradicionalmente, as duas facetas da função primordial que os bancos deveriam assegurar para o bom funcionamento da acumulação capitalista. Esta função foi já em grande parte desviada, sob a forma de uma orientação do crédito a favor dos operadores da Bolsa, bem como de estratégias deliberadas de endividamento dos particulares para o consumo ou a aquisição imobiliária.
As grandes empresas puderam virar-se para os mercados obrigacionais e vender títulos de dívida aos fundos de investimento, mas as pequenas empresas ressentiram-se fortemente das escolhas feitas pelos bancos em matéria de crédito. A partir dos inícios dos anos 2000, os bancos desmultiplicaram todo este crédito postiço, transformando os activos em “títulos” vendidos a outros operadores. Com isso apagava-se-lhes o rasto nos livros de contas. São estas estratégias que hoje fazem “boomerang”, à medida que o poder de compra das famílias (logo a sua solvabilidade) baixa e que as dívidas se revelam incobráveis. A intervenção coordenada, a 13 de Dezembro, dos Bancos centrais de cinco países ou regiões (o Fed norte-americano, o B.C.E., o Banco de Inglaterra, o Banco Suíço e o Banco do Canadá) é uma nova tentativa de salvar os grandes bancos da falência e de circunscrever a amplitude da destruição da sua capacidade de fornecer crédito, mesmo aos seus clientes preferidos e mesmo uns aos outros.
Não aprofundaremos aqui a questão das causas e efeitos da alta dos preços das matérias-primas. Digamos, simplesmente, que esta alta é, em si mesma, um factor de recessão, que torna particularmente importante a existência de um sistema de crédito “são”, tornando a tarefa dos Bancos centrais ainda mais difícil, pois que as suas políticas foram formatadas para garantir uma estabilidade dos preços exigida para maximizar as rendas financeiras.
Queda do dólar, alta do euro
“Pânico a propósito do dólar”, tal era o título do número de 29 de Novembro do semanário da City, ‘The Economist’. Porquê exprimir uma tal inquietação? Desde o mês de Agosto, o dólar baixou 6% em relação às principais divisas mundiais tomadas no seu conjunto. Não haveria aí nada de particularmente notável ou inquietante para os responsáveis financeiros norte-americanos e mundiais se esta baixa não se inscrevesse num movimento de baixa muito mais longo e durável. Ora, desde 2002 e até ao começo da actual crise dos créditos hipotecários, a taxa de câmbio do dólar tinha já baixado cerca de 20%, em pequenos patamares sucessivos. Em cinco anos, o dólar perdeu mais de 25% do seu valor. Estamos manifestamente na presença de um movimento que não é apenas conjuntural. Ele vem de longe e tem raízes estruturais, agravadas por uma crise de confiança caracterizada numa parte, pelo menos, do sistema financeiro norte-americano.
Antes de tratar desse assunto, detenhamo-nos um pouco na questão do euro. O movimento de depreciação do dólar foi ainda mais forte no confronto directo com o euro. Este último gozou progressivamente, ao longo dos anos, do estatuto bem ambíguo de divisa garante de uma certa estabilidade e de rendimentos de colocação crescentemente “atractivos”. Por um momento, em 2002, o euro valeu 86 cêntimos de dólar. Hoje em dia, a taxa é superior a 1 dólar e 48 cêntimos, tendo-se já aproximado do 1 euro e 49 cêntimos. A situação muito desconfortável dos países membros da zona euro resulta do facto de que o sistema capitalista mundial passa por uma fase de transição e de crise nas relações entre as principais moedas. Mas resulta também da fraqueza e da divisão entre as burguesias europeias. A apreciação do euro andou a par do crescimento da sua participação nas reservas monetárias dos bancos centrais de todo o mundo (o quadro junto mostra-nos que ele foi um pouco superior a sete pontos percentuais). Ela fez-se a expensas do dólar, mas também do yen, em função da persistente crise bancária japonesa. Mas este crescimento não é ainda suficientemente forte para que as empresas europeias possam impor o euro como moeda de referência e meio de transacção comercial. É em dólares que um grande número de preços continua a ser enunciado no mercado mundial. A apreciação do euro em relação ao dólar serviu, passageiramente, de tampão à plena repercussão da alta do preço do petróleo. Em contrapartida, ela é fatal para empresas, como a Airbus Industries, que estão em concorrência directa com um rival norte-americano, neste caso a Boeing.
Desde Agosto, a Federal Reserve Board (FED) norte-americana baixou as suas taxas de juro duas vezes, em resposta a pressões internas aos E.U.A.. Esta medida não tem praticamente qualquer hipótese de fazer mais do que travar um pouco o movimento em direcção a uma recessão. Em contrapartida, ela tem um impacto imediato sobre as taxas de câmbio entre o dólar e as outras moedas. A alta do euro contribui desde já à propagação da recessão nos países membros da zona euro.

Queda do dólar: fortes determinantes estruturais reforçados por uma crise de confiança

Um Estado não pode impor a sua moeda nacional como moeda internacional a não ser que seja o país mundialmente dominante, no plano industrial e tecnológico. É este um dos ensinamentos da história do capitalismo, que a longa agonia da libra esterilina ilustrou no caso da Grã-Bretanha. Muitos comentadores desconhecendo a dimensão do défice comercial dos Estados Unidos subestimam a sua importância. Ele traduz muito mais e bem outra coisa do que o efeito de escolhas de política macro-económica, de “erros de pilotagem”. Ele resulta de dois processos: 1) a organização, pelos grandes grupos estadunidenses do sector manufactureiro e da grande distribuição, de uma transferência para a Ásia (e em particular para a China) de uma parte da base industrial dos Estados Unidos e 2) a consequência de uma concentração das despesas tecnológicas em função de um número muito pequeno de sectores, com a perda da preeminência global a favor da Alemanha e do Japão. A dominação tecnológica dos Estados Unidos subsiste apenas nas telecomunicações e em certos domínios da química e da biotecnologia. O caso da Boeing não pode ser generalizado. A baixa do dólar vai atenuar apenas de uma forma muito limitada a perda de competitividade da maior parte das empresas. Por outro lado, não há nenhum sinal de que os grandes grupos estadunidenses ponham fim à sua estratégia de localização na Ásia de uma fracção crescente dos seus investimentos em pesquisa. Para tomar apenas um exemplo, desde o início do decénio é na China que a Microsoft criou os seus novos centros tecnológicos.
Na Ásia, havia o Japão. Agora há a China. Numa grande parte, a acumulação de reservas muito importantes em dólares nos bancos centrais da Ásia é a consequência desta redistribuição mundial das capacidades de produção e não somente das políticas, levadas a cabo pela Fed, de relance económico pela criação de novos meios monetários. À medida, nomeadamente, que a acumulação se consolida na China e que esta se torna independente dos investimentos estadunidenses, pôr-se-á a questão do lugar deste Estado e da sua moeda no sistema mundial das moedas. No imediato, o problema que os bancos centrais asiáticos se colocam (mas também os fundos de Estado dos países do Golfo Pérsico e todos os grandes investidores fora dos Estados Unidos), é o de saber como proceder com respeito a uma moeda de reserva que perdeu mais de 25% do seu valor em cinco anos. Como alguém já notou, estamos em presença da maior anulação de dívida jamais praticada na história do capitalismo desde a revolução industrial (“the biggest default in history”).
O dilema quanto ao dólar coloca-se pelo menos desde finais de 2006. Tornou-se ainda mais agudo desde que a crise dos títulos hipotecários revelou que os bancos norte-americanos venderam aos investidores, durante meses a fio, não activos comportando um certo risco (susceptível de ser razoavelmente coberto) mas verdadeiros efeitos de pacotilha no sentido mais forte do termo, fancaria financeira pura e simples. Alguns fundos de colocação, mas também o Banco da China, sofreram perdas importantes por terem comprado títulos “cegos” contendo efeitos de pacotilha. Pensarão agora duas vezes antes de comprar com toda a confiança. Alguma coisa se quebrou definitivamente. Na queda do dólar há assim agora também uma componente de grave crise de confiança em relação a uma parte, pelo menos, dos bancos e dos mercados financeiros dos Estados Unidos. Um dos cenários de risco sistémico, monetário e financeiro, é o que seria (e não deveremos antes dizer agora, “que será”?) provocado por uma baixa do dólar abaixo de um certo limiar que obrigaria os bancos centrais da Ásia a cessar o apoio que prestam à moeda norte-americana. Ninguém sabe onde se situa esse limiar. Tanto os bancos centrais asiáticos como os Estados petrolíferos do Golfo Pérsico farão tudo para suportar o dólar enquanto puderem. Não está nas suas intenções provocar uma crise. Mas estamos numa situação em que a mínima falha financeira, de uma certa importância, pode levar os investidores a mudar de moeda de reserva. Independentemente da crise de sobre-produção, da qual estão reunidos todos os ingredientes, uma crise financeira mundial deve ser considerada parte componente do horizonte político com que os assalariados provavelmente terão de se confrontar.

Não desesperar de Neuilly?

A queda do dólar não será linear. Factores muito numerosos podem provocar recuperações passageiras. A questão está toda na maneira como elas são apresentadas e interpretadas. A esse propósito a leitura do ‘Le Monde’ de sábado 29 de Dezembro é uma lição. Desde meados de Dezembro, o dólar conheceu uma ligeira retoma. Durante alguns dias manteve-se num nível à volta de 1 dólar e 45 cêntimos por euro. Tanto bastou para que o ‘Le Monde’ titulasse “A resistência da economia americana à crise das hipotecas tranquiliza os mercados: a queda do dólar poderá interromper-se em 2008”. O artigo apoia-se no conselho de alguns “especialistas” franceses, cuja preocupação, manifestamente, é não dizer nada que contradiga o discurso de Sarkozy e seus ministros. Um deles vai ao ponto de pretender que se possa aplicar a uma moeda de reserva internacional, que é suposto (como o seu nome indica) oferecer aos que a detêm um “tesouro de guerra” não desvalorizável, um raciocínio em termos de lei da oferta e da procura: uma vez que a baixa do dólar permite adquirir activos e produtos norte-americanos menos caros, a procura por dólares vai aumentar e com ela a taxa à qual ele se troca. É passar em claro as somas gigantescas que foram acumuladas, cujos possuidores viram - e vêm ainda - o valor baixar tão fortemente. Outro dos especialistas interrogados não hesita em anunciar que a crise do crédito bancário está totalmente controlada e a recessão norte-americana afastada. Uma única pessoa explica que se trata de uma retoma estreitamente ligada a oportunidades de colocação específicas.
A leitura do ‘International Herald Tribune’ (datado de 29 de Novembro, logo dado à prensa um dia após o ‘Le Monde’) remete as coisas no seu lugar. Desde logo no que concerne às perspectivas de recessão nos Estados Unidos, mas de seguida também quanto ao movimento do dólar. O relatório mais recente sobre o sector da construção acaba de calcular que a queda das vendas imobiliárias em Novembro ultrapassou “mesmo as previsões mais pessimistas de Wall Street” (página 18). A provisão de casas e apartamentos por vender engrossa cada vez mais. Todos os novos estaleiros estão parados, mas serão precisos vários anos antes que a provisão de alojamentos por vender se acabe de escoar. O preço médio de um pavilhão baixou 14.000 dólares num só mês. No contexto do mercado de trabalho - de que um dos fundamentos é a mobilidade exigida pelas empresas – uma queda de uma tal amplitude é uma catástrofe, mesmo para assalariados pouco endividados. De um só golpe, o euro subiu novamente para 1 dólar e 47 cêntimos. Os especialistas interrogados pelo ‘International Herald Tribune’ não se julgam na obrigação de tranquilizar uma qualquer “opinião pública”, entregue às maiores inquietações. A sua lealdade vai antes para os grandes investidores, ansiosos por não perder dinheiro estupidamente. Deste modo, um deles explica que a entrada num ano eleitoral adiará mais uma vez a prossecução de políticas que possam controlar a queda. Prevê-se mesmo uma taxa de câmbio que colocaria o euro a 1 dólar e 70 cêntimos. Sob o título “a popularidade do dólar baixa”, um artigo noticia os últimos dados do F.M.I., que dão conta de uma baixa na parte do dólar nas reservas mundiais, de 65% em finais de Junho para 63,8% em finais de Setembro. No mesmo jornal, dá-se conta que a federação alemã de pequenas e médias empresas acaba de publicar um inquérito donde resulta que 45% das empresas vêm tornar-se mais tensa a sua relação com os bancos, temendo vir a experimentar uma verdadeira contracção do seu crédito em 2008. Por fim, as novidades provenientes da China também não são boas. Uma bolha bolsista formou-se em Xangai, de tais proporções que a relação preço / rendimento dos títulos é uma das mais elevadas do mundo. Os investidores estão com medo, tanto mais quanto o Governo deve reapertar a política monetária para fazer face à inflação. Eis o tipo de coisas de que será composto o ano 2008. Bom ano novo, mesmo assim...!
(*) François Chesnais é um académico francês, professor de Economia Internacional na Universidade de Paris XIII-Villetaneuse. Entre os seus trabalhos de maior destaque contam-se 'La mondialisation du capital' (1994) e 'La mondialisation financière' (1996), obra colectiva por si organizada que já se tornou um clássico. É membro do conselho científico do ATTAC, embora critique asperamente os seus pressupostos ideológicos. Este pequeno artigo foi publicado no nº 2 de 'La Lettre du Carré Rouge' (Janeiro de 2008). Em finais de Março de 2008, o dólar troca-se já oficialmente por 1,57 euros. A Reserva Federal norte-americana (Fed) já baixou as suas taxas de juro por seis vezes desde Setembro de 2007, de 5,25% até aos actuais 2,25%. No mesmo período, o BCE manteve teimosamente a sua taxa nos 4%.

Via: http://www.ocomuneiro.com/nr6_03_francoischesnais.html

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Cia: "Fomos Nós Que Preparámos A Inssurreição No Tibete"

por Infortibet [*]

Em 1951 os comunistas tomaram o poder no Tibete. No decurso dos dois séculos anteriores nem um único país do mundo havia reconhecido o Tibete como país independente. Durante estes duzentos anos a comunidade internacional considerara o Tibete como parte integrante da China ou, pelo menos, como um estado vassalo. Já em 1950 a Índia dizia que o Tibete era um componente da China. A Inglaterra que, há quarenta anos, ocupava uma posição privilegiada no Tibete seguiu a posição indiana ao pé da letra. Unicamente os Estados Unidos mostraram-se hesitantes. Até à Segunda Guerra os EUA consideravam o Tibete como pertencente à China e chegaram a travar os avanços da Inglaterra no Tibete. Mas, após a guerra, os EUA quiseram fazer do Tibete uma fortaleza religiosa contra o comunismo. Ao contrário do que se passou com a questão coreana, ficaram completamente isolados. Não puderam por de pé a mínima coligação internacional. Em 1951, a maioria da elite tibetana, ela própria, inclusive a Assembleia-geral ampliada, aceita o acordo negociado com a China quanto a uma "libertação pacífica". Mas isso muda quando, em 1956, as autoridades decidiram aplicar uma reforma agrária nos territórios tibetanos da província de Sichuan. A elite local não aceita que se toque nas suas propriedades e nos seus direitos. Isto iria conduzir ao levantamento armado de 1959. A preparação da revolta armada durara anos, sob a direcção dos serviços secretos americanos, a CIA. Esta escrito, preto no branco, em The Cia's Secret War in Tibet (A guerra secreta da CIA no Tibete), de Kenneth Conboy (University Press of Kansas, 2002, 300 páginas), uma obra a propósito da qual o especialista da CIA, William Leary, escreve: "Um estudo excelente e impressionante sobre uma importante operação secreta da CIA durante a guerra fria". Outro livro, Buddha's Warriors: The Story of the CIA-Backed Tibetan Freedom Fighters, the Chinese Invasion, and the Ulitimate Fall of Tibet (Os guerreiros de Buda – A história dos combatentes tibetanos da liberdade sustentados pela CIA), de Mikel Dunham (Penguin, 2004, 434 páginas), explica como a CIA transferiu centenas de tibetanos para os Estados Unidos, treinou-os e armou-os, lançou armas por meio de pára-quedas sobre o território, ensinou às pessoas como podiam utilizar armas de fogo estando a cavalo, etc. O prefácio desta obra foi redigido por "Sua Santidade o dalai-lama". Sem dúvida este último considerou uma honra o facto de a rebelião separatista armada ter sido dirigida pela CIA. Neste prefácio, ele escreve: "Apesar de eu acreditar que a luta dos tibetanos não possa ser vencida senão através de uma abordagem a longo prazo e por meios pacíficos, sempre admirei estes combatentes da liberdade pela sua coragem e sua determinação inquebrantáveis" (página XI).

Via: http://http://resistir.info/asia/tibete_mar08.html

A verdadeira História da Senha do 25 de Abril de 1974

Era meia-noite, 20 minutos, 19 segundos

Carlos Albino

Passaram 25 anos desde aquele momento em que eu e o Manuel Tomás nos vimos directamente comprometidos e cúmplices conscientes na senha para o arranque simultâneo dos militares que decidiram acabar de uma vez por todas com uma ditadura que matava o País com uma morte que não se via. Durante este tempo todo, os únicos responsáveis directos pela execução e transmissão da senha têm assistido ao mais lamentável desfile de vaidades por parte de gente e até de forças políticas que indevidamente têm querido apropriar-se desse gesto. E o que é mais lamentável é que, tendo este País tantos historiadores, quase nenhum destes quis acertar com a verdade sobre factos recentes e autores vivos. Em matéria de senhas do 25 de Abril, tem havido para cada um a sua senha.
Otelo é que, no fundamental, tem dito sempre a verdade no seu legítimo ponto de vista de comandante operacional do 25 de Abril. E, diga-se, também pouco mais interessará do que esse ponto de vista, pelo que os responsáveis efectivos pela execução e transmissão da senha jamais ao longo destes anos tentaram meter-se ou insinuar-se nessa área em que Otelo fala por direito próprio, como também, depois que foi comunicada e confirmada em definitivo a senha escolhida pelo Movimento, jamais incomodaram os militares operacionais com questões que apenas passaram a fazer parte da responsabilidade de quem, independentemente do risco (ao lado do local da emissão da senha estava o Governo Civil, pejado de polícia de choque, e em linha de vista a própria sede da PIDE), assumiu o firme compromisso de a transmitir e no momento exacto. Foi o que aconteceu e também isto foi importante.
Ora, a partir do momento em que ficou assente que para o arranque do movimento militar seria necessária uma senha transmitida através de uma estação de rádio com efectiva cobertura nacional, as escolhas não eram muitas. Uma das escolhas seria a Rádio Clube Português, que haveria de ser pensado para posto de comando do Movimento após ocupação militar das instalações, e transmitir previamente uma senha por aí seria uma imprudência de toda a ordem. Outra escolha possível seria a antiga Emissora Nacional, mas não se via lá dentro alguém com capacidade de intervenção e iniciativa para actuar àquela hora ou mesmo a qualquer outra hora, pois os democratas nessa altura não abundavam por lá. Restava a Rádio Renascença e dentro desta o "Limite", um programa independente que, pelo aluguer de instalações e antenas para as suas emissões, pagava por mês o equivalente em moeda actual a 4500 contos.
O programa, à data da preparação final do movimento militar, tinha no núcleo duro dos seus decisores Marcel de Almeida (um amigo de longa data de Melo Antunes), Leite Vasconcelos e Manuel Tomás (vindos de Moçambique com indesmentível currículo de democratas) e o signatário.
Como não acontecia com qualquer outro programa de rádio, o "Limite", que era transmitido em directo, era alvo de duas censuras: uma que era a da própria Rádio Renascença e a outra a oficial, exercida por um coronel cujo nome neste momento não me ocorre mas de que conservo as garatujas de assinatura, instalado na Renascença exclusivamente para actuar sobre o "Limite" (por tanto recebia o equivalente hoje a 300 mil escudos, quantia obtida através do aumento do aluguer das antenas ao "Limite" - ou seja, o programa pagava indirectamente ao seu próprio censor...
E quanto aos célebres Emissores Associados de Lisboa, o que era isso? Essa rede de fracos emissores mal se ouvia em Lisboa (nas zonas baixas da cidade a sintonia era impossível). Seria impensável a transmissão de uma senha para todo o País através dos Associados. O sinal que consistiu em E depois do Adeus serviu e bem como primeiro toque para uns poucos operacionais e, diga-se já agora, serviu também para quem no "Limite" estava com aviso.
Mas por aí houve uma fase em que toda a gente corria para as senhas de Abril, para os símbolos de Abril, para as condecorações de Abril, para os heróis de Abril, e no meio de tanta distracção chegou a dizer-se que o sinal dos Associados serviu para todo o País, pouco faltando para se garantir que quando o Paulo de Carvalho apresentou tal canção para o concurso televisivo já o tinha feito a pensar no MFA, na noite do 25 de Abril, na libertação dos presos políticos, no fim da censura e no termo da guerra colonial. Que José Afonso assim já pensasse (e de há muito) quando escreveu, cantou e gravou a Grândola, não duvido.
Mas devo dizer, agora que passaram 25 anos e no que está relacionado com o que me pediram, que apenas dois civis tiveram conhecimento do processo que culminaria com a senha do 25 de Abril: Manuel Tomás e quem dá testemunho nestas linhas. Álvaro Guerra foi um precioso elemento de ligação e naturalmente que não foi ouvido nem achado para a execução da senha; Leite Vasconcelos, que no seu dia de folga deu a sua voz a tudo o que tinha que ser dito nos exactos 11 minutos de duração do bloco previamente submetido às censuras; o estagiário de locução que estava na cabine (não quero dizer o nome antes que o encontre porque é um dos que têm andado para aí a mentir) estava longe de imaginar o que se iria passar e nada justificava que se lhe dissesse o que estava em jogo; a regência de estúdios onde em todo o caso poderia ser interrompida a emissão caso tivesse ocorrido alguma denúncia, estava debaixo de olho. Mas, acima de tudo, devo aqui testemunhar que o Manuel Tomás, para além de uma lealdade total, foi uma peça-chave para o êxito da pequena coisa que foi pedida - a senha.

A caminho do limite 22 de Março.
Informação inicial sobre a inevitabilidade de uma senha por rádio com efectiva cobertura nacional para o arranque dos quartéis.
29 de Março. Ensaio no Coliseu (festival da Casa da Imprensa) sobre a aceitação de Grândola. O festival foi gravado e transmitido em diferido pelo Limite.
23 de Abril, fim de manhã. Álvaro Guerra é o elemento de ligação com Carlos Albino, a quem pede a transmissão da canção Venham mais Cinco no Limite de 25 de Abril. Carlos Albino pede a Álvaro Guerra para devolver a resposta de que tal canção estava proibida pela censura interna da Renascença embora a censura oficial a tolerasse. Sugeridas alternativas, entre as quais Grândola.
24 de Abril, 10 horas. Álvaro Guerra novamente serve de elo de ligação de Almada Contreiras com Carlos Albino, a quem comunica a escolha definitiva de Grândola Vila Morena como senha para o movimento militar. Carlos Albino garante a transmissão.
24 de Abril, 11 horas. Carlos Albino adquire na então Livraria Opinião, a Madeira Luís, o disco "Cantigas de Maio" para garantia. Desde Dezembro de 1973, havia indícios de que a PIDE preparava o assalto dos escritórios do Limite, na Praça de Alvalade.
24 de Abril, 15 horas. Encontro decisivo com Manuel Tomás, para a execução da senha e garantia de transmissão face às duas censuras que o Limite enfrentava: a da Rádio Renascença e a oficial (um coronel que acompanhava as emissões em directo e visava previamente os textos). Carlos Albino e Manuel Tomás decidem sair dos estúdios para um local onde possam prosseguir com segurança o diálogo.
24 de Abril, 15 e 30. Ajoelhados na Igreja de S. João de Brito e simulando rezar, Carlos Albino e Manuel Tomás combinam todos os pormenores técnicos da senha.
24 de Abril, 17 horas. Leite Vasconcelos (em dia de folga na locução do Limite) é convocado por Manuel Tomás para "gravar poemas". Carlos Albino escreve textos para serem visados pelo censor.
24 de Abril, 19 horas. Censor autoriza textos e alinhamento.
24 de Abril, 20 horas. Na Renascença, gravação dos textos por Leite Vasconcelos, desconhecendo o objectivo.
25 de Abril. Aos 20 minutos e 19 segundos, arranque da fita com a senha. Carlos Albino e Manuel Tomás retiram-se da Renascença às 3 e 30.
Que vasta galeria de falsos heróis
Carlos Albino
A senha, com as características com que foi pedida (leitura da primeira quadra de Grândola, transmissão integral da canção e repetição da quadra inicial), era à partida de difícil execução e transmissão num programa que estava debaixo de duas censuras: uma, relativamente tolerante e até em certos momentos pactuante, montada pela Renascença, e outra, braço directo da censura oficial a actuar exclusivamente sobre o Limite.
É lícito recordar isto, pois não são poucos os que têm procurado fazer a contrafacção da senha, chegando a pôr em causa a palavra e a própria dignidade pessoal das duas únicas pessoas (e não mais) que têm a ver directamente com o caso.
Em todo o caso, a leitura das quadras (independentemente de a canção de José Afonso ser permitida) e só pelo facto de ser uma leitura suporia sempre passagem pela censura que chegou a impedir que fizéssemos momentos de silêncio (as brancas como se diz na gíria da rádio). Ninguém hoje pode imaginar a dificuldade que era a de fazer rádio em directo como nós, os do Limite, fazíamos. Era aliás a nossa razão de existir na rádio.
Como é que as dificuldades foram contornadas, com a máxima garantia de que a transmissão da senha não seria interrompida, abortada ou substituída por outro material? Todos os cuidados eram poucos, pois não se passava só connosco - a PIDE conseguia instalar informadores em tudo o que fosse sítio. O Limite não poderia ser uma excepção só por ser Limite.
Como dois a pensar funcionam melhor do que um só, o Manuel Tomás e eu (ajoelhados na Igreja de S. João de Brito, local fantasticamente protegido para conspiração de tal tamanho, pois até o facto de o pároco ser então o antípoda dos progressistas ajudava a que o local obrigasse a PIDE a grandes cuidados), a senha ficou combinada nestes termos: eu escreveria dois poemas para justificar a chamada a serviço do Leite Vasconcelos, que estava em dia de folga, os textos seguiriam para o censor, o Manuel Tomás, segundo um alinhamento combinado, faria a engenharia final da peça, no domínio estético e técnico. Este modo de actuação não daria grandemente nas vistas: o Limite assentava na sua maior parte sobre textos poéticos meus lidos sempre, àquele época, pelo Leite de Vasconcelos e trabalhados também sempre segundo os belíssimos esquemas que somente a sensibilidade artística de Manuel Tomás conseguia nas circunstâncias em que trabalhávamos.
Assim foi.
O alinhamento foi redigido, em resumo: quadra, canção Grândola, quadra, poema Geografia, poema Revolução Solar e para finalizar a canção Coro da Primavera.
Os censores (da Renascença e o coronel) viabilizaram os textos sem hesitações: a "geografia" falava dos rios portugueses e a "revolução solar" falava de planetas e galáxias... Para eles, isto não tinha "política". Viabilizados, os textos foram lidos pelo Leite de Vasconcelos e gravados a seco, sendo pouco depois trabalhados sonoplasticamente pelo Manuel Tomás. O bloco ficou com 11 minutos, o que era habitual no Limite. Tudo se fez como se tudo fosse o mais normal. O que não tem sido normal é o aproveitamento que nestes 25 anos se tem feito da senha.
Vou esforçar-me para não dizer nomes, pois estamos em época de concórdia, mas recordo que surgiu um e garantiu que escolheu comigo o disco da senha. Não escolheu nada. Surgiu outro e garantiu que a senha foi o Depois do Adeus - e bem se viu o triste espectáculo e as tremendas confusões que fizeram nas comemorações do 25 de Abril que decorreram em Santarém. Ora isso não foi senha, por amor de Deus!
Outro que nem era do Limite deixou-se filmar para um alegado documentário sobre a senha que percorreu o Alentejo, sendo aqui recebido como herói. Não era. E outro que até era do Limite - não resisto a citar Leite de Vasconcelos - deixou-se filmar pelo musicólogo Fernando Matos Silva para alegada "reconstituição do cenário". Não era. A voz foi dele, mas ele estava longe do estúdio e mais longe ainda do que a senha significava.

Reportagem no ar sem hesitação
Carlos Albino
As primeiras reportagens sobre o 25 de Abril e o que estava a acontecer nas ruas da capital, solicitadas como serviço a Adelino Gomes, a quem foram disponibilizados meios profissionais adequados, foram transmitidas por responsabilidade do Limite.
Os noticiários da Renascença até 27 de Abril continuaram com reservas sobre a queda da ditadura e ninguém esperava que o MFA fosse ocupar a Rádio Clube Português para mandar fazer reportagens... A Emissora Nacional dava música clássica e quanto aos Emissores Associados, ninguém ouvia nem podia ouvir isto.
Os primeiros debates políticos com intenção deliberadamente pluralista aconteceram no Limite. Mas também todo este sonho acabou no dia 8 de Junho de 1974, após a transmissão da primeira entrevista com Arnaldo Matos (na presença de Fernando Rosas, o historiador deve recordar bem a cena) e depois de terem sido ouvidas personalidades dos mais diversos quadrantes.
A Renascença acabou com o Limite trocando-o pelo efémero "Voz dos Trabalhadores" decidido em plenário, onde também ninguém se solidarizou com as circunstâncias que ditaram o fim do contrato firmado entre o Limite e a Renascença.
Não foi difícil perceber que a colisão frontal entre o Limite e a administração da Renascença de então resultou do facto de se ter usado a estação para a transmissão da senha. Até hoje, ao que se saiba, nunca a estação assumiu como ponto de honra o facto de ter acontecido nessa casa o gesto que significou a mudança radical da vida portuguesa, pois, se o fizesse, dificilmente poderia evitar a alma do Limite que tem todos os motivos para descansar em paz.
Até ao último momento da existência do programa ninguém compreendeu como a Igreja perdeu uma oportunidade excelente para, logo em 1974, sair da sexta-feira pouco santa da ditadura para decididamente entrar no dia de ar livre da ressurreição que começou a ocorrer apenas passados anos, limitada e tardiamente.
Digamos que sobre o Limite caiu uma espécie de maldição impensável e da qual, por certo, nestas páginas de alguma forma se livra tendo sido necessário deixar passar estes 25 anos para que se diga à vontade o que jamais pode ser entendido como defesa de causa própria. Na verdade, algo de fundamental para a Revolução do 25 de Abril faz parte do património disso que hoje é já mera lembrança e simples recordação, mas que para aquela grande parte de uma geração a entrar nos 40, 50 e 60 que não perdeu ou não quis perder a memória, continua a ser a evocação suave de uma deliberada cultura de sensibilidade e da fragrância de um perfume com as possíveis palavras rasgadas nas noites de terror.
Não se está a sugerir o descerramento de uma placa à entrada da Renascença, nem outra coisa qualquer. O que se sugere é que já era altura de a Renascença assumir o Limite como facto importante da sua biografia, como altura é dos historiadores e candidatos a isso serem mais rigorosos e precisos, quanto a nomes, horas e formas. Sobretudo, ouvindo quem fez sobre o que fez.
Diário de Notícias, 24 de Abril de 1999

Salvar a Economia

Querem salvar a economia?

Espalhem a riqueza e dêem um aumento aos trabalhadores

por Mike Whitney [*]

A sombra escura da insolvência paira sobre a Wall Street. Um jogador importante, o Bear Stearns, já afundou, e aparentemente um outro gigante do investimento pode estar no mesmo caminho. Está a ficar feio fora dali. O chamado TED spread [1] , que mede a relutância dos bancos a emprestarem uns aos outros, começou a ampliar-se ameaçadoramente, o que sugere que os mercados de dinheiro pensam que mais um cadáver estará a flutuar rumo à superfície um dia destes.
A desalavancagem em andamento das instituições financeiras e a persistente degradação de activos deixa o Fed aturdido. Bernanke encurralou-se a si próprio ao estender o mandato do Fed de forma a incluir toda a gente na Wall Street com um endereço email e uma tigela de mendigo. Agora ele assumiu a tarefa ainda maior de consertar a canalização que mantém o crédito a fluir entre os vários bancos de investimento. Boa sorte. Há muito mais sofrimento pela frente. O FMI espera que a conta final virá a ser de US$945 mil milhões, o que significa para os bancos US$3 milhões de milhões em empréstimos perdidos. Ao melhor ritmo do próprio Bernanke, esta confusão poderia perdurar durante anos.O fiasco dos subprime americanos desandou no que o FMI está a denominar "o maior choque financeiro desde a Grande Depressão". Os mercados de capital da América estão no congelador. O mercado de títulos corporativos está congelado, os bancos estão abalados com as suas perdas, e o mercado habitacional está em ruínas. Ninguém está a comprar e ninguém está a emprestar. Os negócios com acções privados estão 75 por cento abaixo do ano passado e ninguém tocará um mortgage-backed security (MBS) nem com uma vara de dez metros. A poderosa roda das finanças modernas está a ranger até à paralisação e ninguém sabe como fazê-la girar outra vez.Os consumidores americanos também estão a sentir o aperto. Os cartões de crédito atingiram o limite máximo, empréstimos a estudantes vencidos, pagamentos de carros com atrasos, e hipotecas a entrarem em fase de arresto. Além disso, os salários não mantiveram o ritmo da produção e o saldo líquido dos empréstimos habitacionais foi encerrado. Agora que a torneira do crédito foi fechada, o trabalhador americano está a sofrer, mas ninguém está a oferecer-lhe uma salvação ou mesmo uma ajuda, apenas umas poucas migalhas do "pacote excedente" de Bush. Quinhentos dólares mal dá para encher o tanque de um SUV de tamanho normal. Um novo inquérito do Pew Reasearch Center, "Dentro da classe média — Maus tempos golpeiam a boa vida", mostra que as famílias trabalhadoras estão endividadas até às orelhas e que menos americanos "acreditam que estão a avançar" do que em qualquer momento no último meio século. O estudo mostra também que a maior parte das pessoas acredita que "é mais difícil manter um estilo de vida classe média" e que "desde 1999, eles não tiveram ganhos económicos". As famílias médias estão a lutar apenas para pagar as contas.
É porque muitas pessoas compraram casas quando deveriam ter aberto contas de poupança. Elas foram ludibriadas com a especulação habitacional a fim de obter algum dinheiro. Parecia um bom meio para ultrapassar salários estagnados e horas extras mal pagas. Os sábios animadores da TV garantiam que "os preços das casas nunca cairão". Era tudo conversa fiada. Agora 15 milhões de proprietários de casas estão de cabeça para baixo com as suas hipotecas e exactamente os mesmo peritos estão a censurar os trabalhadores por falsificarem os factos nos seus formulários de rendimentos.
Não é de admirar que a confiança do consumidor tenha caído para recordes de baixa. Os trabalhadores não precisam lições sobre poupança de dinheiro, eles precisam de um aumento. As pessoas importantes no Bear Stearns ainda estão a jantar lagostas no Four Seasons enquanto os trabalhadores estão simplesmente a tentar encontrar um caminho no meio do Inverno nuclear de Greenspan. Onde está a justiça?
Já foram escritos volumes acerca da crise actual, subprime-isto, subprime-aquilo. Tudo o que podia ser dito acerca de collateralized debt obligations (CDOs) credit default swaps (CDS) e mortgage-backed securities (MBS) já foi dito. Sim, eles são exóticas "inovações financeiras" e, não, eles não são regulados. Mas que diferença faz isso? Aquilo sempre foi banha da cobra e sempre houve vendedores de banha da cobra. Greenspan simplesmente elevou a barra um ponto, mas ele não é o primeiro bufarinheiro e nem será o último. O que realmente importa é a ideologia subjacente, que é a razão de fundo para a libertação desta hidra que salta sobre a economia. Trinta anos de gotejamento (trickle down), 30 anos de tagarelice sobre o lado da oferta (supply-side), 30 anos de culto ao ídolo reaccionário Ronald Reagan, 30 anos de implacável política anti-trabalho, mercado livre, ortodoxia desregulamentada, que inchou o maior Zeppelin de saldo líquido da história.
Agora a bolha está a assobiar no furo do dirigível e a fuga do gás lança a devastação por todo o planeta. Há tumultos por alimentos no Haiti, no Egipto e no Kuwait. Onde quer que a divisa local esteja ligada ao dólar em queda, a inflação está a levantar voo e as perturbações a fermentarem. Os bancos europeus também estão a listar o lixo apoiado por hipotecas que compraram de correctores nos EUA e precisam de planos de salvação dos bancos centrais para continuarem a flutuar. São mais partículas radioactivas decorrentes da vigarice das subprime. Ministros das Finanças em todas as capitais de todos os países estão a preparar-se para um furacão tipo década de 1930 que poderia remeter as acções para o crash e disparar os preços dos alimentos e da energia para a estratosfera. E tudo isto pode ser rastreado às doutrinas loucas do neoliberalismo. Estas são as teorias que guiam as políticas monetárias "espreme-o-teu-vizinho" da América e espalham a perturbação financeira em todas as cidades e aldeias do mundo. Os actuais comissários de bordo do sistema são incapazes de consertar o problema, porque eles representam os interesses das pessoas que mais beneficiaram com as rupturas. O mais recente "plano" de Paulson para os mercados financeiros é um bom exemplo; nunca um esquema mais pro-negócios e em causa própria, foi colocado sobre o papel. Gary North resume isto no seu artigo "Really Stupid Loans":
"Com a mais recente proposta do Federal Reserve System, apresentada ao público pelo secretário do Tesouro Henry "Goldman Sachs" Paulson, o Fed está a pedir ao governo dos Estados Unidos para torná-lo o Grande Protector do Capital... As novas propostas centralizarão o poder sobre as finanças nas mãos de uma agência que é oficialmente dirigida pelo governo mas de facto é dirigida pelos agentes dos maiores bancos de reserva fraccional. ...A regulação por equipas de economistas do quadro permanente não tornará o sistema menos frágil. Ela o tornará mais pesado no topo e menos flexível. "Alguma versão deste plano provavelmente será aprovada no próximo Congresso. Não importa se sim ou não, a direcção é a mesma: rumo a uma economia controlada pelo governo federal junto com os proprietários privados titulares dos meios de produção, isto é, rumo ao fascismo". (Garo Norte, Rally Tupis lonas)
Toda a questão é colocar os mercados sob o controle do Fede de modo a que, quando surgir a próxima crise financeira (a próxima vigarice), o Fede possa salvar os banqueiros e administradores de euge funda sem consultar o Congresso.·O plano de Paulino é um jogo de poder, nada mais. A máfia do investimento quer tomar o comando de todo o sistema financeiro na sua perfeição. Eles querem liquidar a SEC (Seguires AMD Exchange Comissiona) e qualquer outro cão de guarda do governo e colocar os bancos de investimento, euge funda e correctores no sistema de honra. É o fim da transparência e responsabilidade as quais, naturalmente, já são escassas.
NACIONALIZAÇÃO DA HIPOTECAActualmente, Paulino e Birmane estão a expandir os balanços das Empresas Patrocinadas pelo Governo (Governem Sponsors Interpretes, SES) de modo a que a Fanei Mãe e o Freire Mac subscrevam 85 por cento de todas as hipotecas enquanto a FHA (Federal Holding Administrativo) cobrirá mais 10 por cento. A indústria da hipoteca está a ser nacionalizada para salvar os compadres da banca enquanto o contribuinte é preso com outros US$4,4 milhões de milhões de empréstimos dúbios. Paulino não se importa se o contribuinte será provisionado para a conta. O que o incomoda é a perspectiva de que, em algum momento, os trabalhadores exigirão salários mais altos para acompanhar a inflação. Então irromperá todo o inferno. Paulino AMD Co. preferiria ver a economia perecer num holocausto deflacionario do que acrescentar outra migalha ao salário dos trabalhadores. Ele e os da sua laia travam a guerra de classe com muita seriedade; eis porque estão a vencer. Mas a sua estratégia também cria problemas. Quando os salários não acompanham a produção, a procura diminui e a economia vacila. É o que está a acontecer agora e Paulino sabe isso. Os trabalhadores estão super-tensos e não podem comprar as coisas que fabricam. Eles mal têm o suficiente para alimentar as crianças e encher o tanque para o trabalho. Os gastos do consumidor (os quais representam 72 por cento do PIB) estão em queda livre ao mesmo tempo que a bolha do saldo líquido do Fede está a explodir.
O neoliberalismo tem um registo de vinte anos de produção de exactamente as mesmas calamidades. Por que esta crise será diferente? Por que deveriam os EUA ser poupados do mesmo tratamento predatório aplicado a muitas outras vítimas da oligarquia corporativa global? Após a explosão da bolha do saldo líquido do Fede, os abutres corporativos atacarão e comprarão recursos vitais e industriais por tostões.·O economista Michael Hudson antecipou muitos dos desenvolvimentos actuais nos mercados financeiros numa entrevista admiravelmente presciente em CounterPunch, em 2003, chamada The Coming Financial Reality :
Michael Hudson: "A livre empresa sob as condições financeiras de hoje ameaça provocar uma centralização sem precedentes de planeamento, não nas mãos do governo mas sim de conglomerados financeiros e administradores do dinheiro. Quando o poder de planeamento do governo é destruído ele fica disponível para ser tomado, com um monte de exorbitâncias deixadas para os políticos cujas campanhas eles apoiaram e que "descerão do céu" para empregos muito bem pagos no sector privado, estilo japonês, depois de terem efectuado o seu serviço para o novo regime.
Pergunta: O regime financeiro não é constituído senão por parasitas?Michael Hudson: "O problema com parasitas não é apenas o facto de eles sugarem o alimento e nutrição do seu hospedeiro, enfraquecendo o seu poder reprodutivo, mas sim de que eles se apossam também do cérebro do hospedeiro. O parasita engana o hospedeiro levando-o a pensar que está a alimentar-se a si próprio.
"Algo assim está a acontecer hoje quando o sector financeiro devora o sector industrial. O capital financeiro pretende que o seu crescimento é formação de capital industrial. Eis porque a bolha financeira é chamada "criação de riqueza", como se ela fosse o que reformadores económicos progressistas imaginaram um século atrás. Eles condenaram a renda e o lucro de monopólio, mas nunca sonharam que os financeiros acabariam por devorar os proprietários da terra e os industriais. Os Imperadores da Finança venceram os Barões da Propriedade e os Capitães da Indústria". (Michael Hudson, "The Coming Financial Reality", Counterpunch, entrevistado por Standard Schaefer.)
Bingo. Hudson não só explica como o capitalismo financeiro está a inserir-se dentro da estrutura de poder governamental como também prevê que a "formação do capital industrial" – que é a produção de coisas que as pessoas realmente podem usar para melhorar as suas vidas – será substituído com complexos instrumentos de dívida e derivativos que não acrescentam valor tangível às vidas das pessoas e servem meramente para expandir a riqueza de uma bem estabelecida e cada vez mais poderosa classe de investidores.
O capitalismo financeiro "devorou proprietários da terra, industriais e afins" e criou uma galáxia de passivos sedutores os quais são mascarados como activos. Contratos de derivativos, por exemplo, representam mais de US$500 milhões de milhões (trillion) de transacções não regulamentadas de contrapartes, um "sistema bancário sombra" completamente desligado da economia "real" subjacente, mas suficientemente grande para remeter o mundo para uma depressão cruel durante os próximos anos. O objectivo deveria ser desmantelar este corrupto sistema Ponzi [2] , o qual simplesmente envolve a dívida numa fita, e reconstruir a economia sobre um sólido fundamento do trabalho produtivo, da solidariedade de trabalhadores e acima de tudo da redistribuição do rendimento e portanto do poder de compra que agora foge do sistema e flui para os dois ou três por cento do topo.
O poder político tem que ser tomado aos mandarins financeiros ou então a disparidade de riqueza continuará a crescer e a democracia definhará. Já vimos as nossas principais instituições – os tribunais, o congresso, os media e a presidência – poluídos pelo fluxo constante de contribuições corporativas, as quais servem apenas os interesses estreitos das elites.
Henry Liu expande esta ideia no seu excelente artigo A Panic-stricken Federal Reserve :
"Na década de 1920, a vasta disparidade de riqueza entre os ricos e o assalariado médio aumentou a vulnerabilidade da economia. Para uma economia funcionar com estabilidade numa escala macro, a procura total precisa equalizar a oferta total. A disparidade de rendimento resultará finalmente na deficiência da procura, provocando o excesso de oferta. A extensão de crédito aos consumidores pode prolongar o desequilíbrio oferta/procura mas se o crédito for estendido para além da capacidade do rendimento para sustentá-lo, isto resultará numa bolha de dívida que inevitavelmente explodirá com sofrimento económico que pode ser aliviado apenas através da inflação... Mais investimento normalmente aumenta a produtividade. Contudo, se as recompensas da produtividade acrescida não forem distribuídas razoavelmente para os trabalhadores, a produção em breve ultrapassará a procura. A busca por altos retornos num mercado em baixa procura levará a bolhas de dívida com especulação generalizada. Hoje, o crédito pendente do consumidor excepto hipotecas habitacionais soma cerca de US$14 milhões de milhões (trillion), aproximadamente o mesmo valor do PIB anual.
Voilà. Uma economia forte exige uma força de trabalho forte e uma distribuição equitativa da riqueza. Quando o dinheiro está concentrado em muito poucas mãos, o sistema político atrofia e torna-se indiferente às necessidades do seu povo. É nessa altura que as leis e instituições do país são remoldadas de modo a reflectir as ambições dos ricos e poderosos.O sistema financeiro está a fazer exactamente o que foi concebido para fazer, está a esmagar as décadas da experiência do gotejamento (trickle-down). Programas sociais foram extintos, a infra-estrutura civil está em cacos, as protecções legais foram barbarizadas e os direitos dos trabalhadores foram golpeados. Será de admirar que estejamos embrulhados numa guerra invencível e que o sistema financeiro esteja em bancarrota?
O único meio de romper a opressão da Comissão Política financeira da Wall Street é nivelar o campo de jogo através de maior distribuição de riqueza. Este é o melhor caminho para reacender a democracia e tornar a América a terra da oportunidade. E tudo isto começa por dar um aumento aos trabalhadores da América.
12/Abril/2008

[1] Inicialmente, o TED spread era a diferença entre a taxa de juros para três meses do contrato do U.S. Treasuries e o contrato de três meses em Eurodólares representado pelo London Inter Bank Offered Rate (LIBOR). Entretanto, desde que a Bolsa de Mercadorias de Chicago abandonou o T-bill futures, o TED spread agora é calculado como a diferença entre a taxa de juros T-bill e o LIBOR. O TED spread é uma medida de liquidez e mostra o fluxo de dólares dentro e foram dos Estados Unidos (Wikipedia). [2] Ponzi: nome do vigarista que nos anos 30 montou um esquema tipo pirâmide nos EUA, tal como o da D. Branca em Portugal.

terça-feira, 15 de abril de 2008

A Amazónia Internacionalizada

considerações sobre a fronteira setentrional.

Felipe Kern Moreira

Aqui está um assunto que sempre quando surge remete às teorias conspiratórias. Pois bem, muita gente já ouviu falar do mapa do Brasil que constara em livros didáticos nos Estados Unidos da América e que apresentava a região amazônica como área internacional. Quando estas ondas conspiratórias surgem a comoção atinge a chancelaria brasileira que de uma forma ou outra procura fazer um levantamento dos dados. No caso específico do mapa escolar americano já ficou constatado que a página do livro era uma falsificação grosseira e a autoria do engodo restou atribuída a grupos nacionalistas.
É claro que o desfecho deste caso em específico não põe termo à questão. De qualquer forma, existem vieses estratégicos que entendem que a Amazônia é uma região sobre a qual repousam interesses externos.
O desafiador num exercício de análise de conjuntura desta natureza é conseguir conferir cientificidade ao texto. A ciência enquanto percepção e sistematização da realidade possui dificuldade em enfrentar temas que apresentem dados quantitativa ou qualitativamente incipientes porque a aceitação de um argumento na comunidade científica passa também pela clareza dos dados que lhe confere suporte. Por outro lado, se todos os dados em política internacional fossem tão claros não haveria a necessidade de serviços de inteligência.
Neste sentido, muitas vezes parece inglória a tarefa do pesquisador e estrategista em relações internacionais na medida em que existem dados que conferem significação às relações de poder que não estão disponíveis. Considerados os constrangimentos, interessa a este texto debater determinados ajustes que o pensamento estratégico tem sofrido no sentido de tentar compor um cenário de interesses e estratégias de projeção de poder na fronteira norte amazônica.
Ocorre que a ameaça de internacionalização da região amazônica, seja pela utilização da violência não legitimada seja pelo exercício do poder brando, encontra mais ressonância no imaginário social do que nos postulados estratégicos. Mesmo na hipótese da mudança dos interesses e do eixo do discurso legitimador das potências mundiais, de guerra contra o terror para a hegemonia ambiental, a hipótese de domínio militar da Amazônia parece insustentável. A heterogeneidade política dos países envolvidos, a considerável dimensão territorial da floresta tropical em conjunto com o domínio da capacidade logística de guerra na selva tornam o domínio pelas armas uma moção com expressivo custo material e principalmente político.
Em certa medida, as dinâmicas eleitorais na Austrália e nos EUA têm acenado para o arrefecimento do discurso legitimador de coalizões militares e a necessidade da participação estatal mais efetiva nos regimes ambientais. Contudo, na fronteira setentrional particularidades apontam para a configuração de um cenário estratégico específico com interesses, movimentos e constrangimentos identificáveis.
Para explorar este assunto gostaria de utilizar a metáfora do quebra-cabeça: fornecendo algumas peças para a composição de um quadro. As considerações deste texto dizem respeito à informação disponível e a visualização da figura completa do puzzle deixa-se facultada à inteligência ou à imaginação do leitor.
Se formos reparar com atenção, na fronteira norte do Brasil, entre o delta do Amazonas e o do rio Orinoco, existe um arco de relevância estratégica tanto em nível estrutural quanto conjuntural. Por estrutural entendem-se os fatores estáticos, de longa duração como a geografia física e em nível conjuntural os dinâmicos, contingenciais, como as dinâmicas políticas e jurídicas.
Dentre os fatores estruturais, nesta região os estudos geológicos apontam para a existência de manganês, petróleo, urânio, nióbio, pedras preciosas. São os considerados minerais estratégicos. O manganês é fundamental para a indústria do aço; muitos países possuem o minério de ferro, mas poucos o manganês. O urânio constitui uma alternativa energética viável principalmente considerando o domínio tecnológico brasileiro no campo do enriquecimento para fins pacíficos. O nióbio entre outras coisas é apropriado para construção de ductos de água e petróleo a longas distâncias, mas também é utilizado na produção e energia nuclear, no campo industrial bélico e aeroespacial.
No contexto conjuntural, propõe-se que a análise da fronteira norte exija a ampliação do foco na tríplice fronteira para o arco setentrional - Brasil, Venezuela, República Cooperativista da Guiana, Suriname e região administrativa da Guiana Francesa - o qual impressiona tanto pela complexidade social e institucional quanto pelo descaso da chancelaria brasileira.
No contexto mundial, sabe-se que Estados Unidos da América, Nova Zelândia, Canadá e Austrália foram votos contrários à Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada na ONU depois de 22 anos de negociação. Estes quatro países - todos ex - colônias britânicas - possuem receio que o uso da terminologia ‘autodeterminação’, relacionada com situações de descolonização, coloque em cheque a integridade territorial enquanto princípio constitucional do Estado democrático de direito.
A preocupação destes países não é compartilhada pelo Brasil mas a Convenção de fato pode gerar o debate sobre antinomias constitucionais e não é coincidência que o Supremo Tribunal Federal tenha recentemente recebido a visita do Alto Comissariado da ONU para os direitos humanos para debater a agenda dos povos indígenas.
Aqui, não há consenso se se tratam de direitos humanos ou culturais e no campo da dinâmica normativa a diferença é considerável.
Coincide também que muitas das áreas protegidas na região como é o caso de 70% do território de Roraima possuam jazidas consideráveis e também grande parte destas estejam em regiões de faixa de fronteira.
Ainda algumas peças parecem ser importantes. O papel de liderança na América Latina que em parte justifica o apelo brasileiro por um assento permanente no Conselho de Segurança é compartilhado com reservas pelos países latinos.
Agora, ao contrário da relação com a América hispânica, a Guiana e o Suriname - marginalizados na academia e na política - são abertos à influência brasileira sem que isto soe à prevalência lusófona. Em Georgetown existe um bairro brasileiro, mas não há o ensino do português; já em pleno território brasileiro, na maloca do Jakamim, terra indígena macuxi, a língua franca é o inglês.
Relevante é também que as forças armadas na Colômbia são as mais bem equipadas na América Latina e aí se encontra um eixo de desequilíbrio regional visto pela Venezuela como ameaça potencial. Preocupa que Chavez não aprendeu a lição que tudo o que se fala deve ser verdade, mas nem toda verdade deve ser dita.
Por outro lado, é descabido atribuir à modernização bélica da Venezuela - até então - o qualificativo de corrida armamentista.
Nesta medida, atuação americana como causa da disputa em nível estatal parece evidenciar o transe da leitura instantânea da região. A Amazônia é um dos temas mais decisivos da política internacional brasileira. Neste raciocínio, o arco setentrional está compreendido nas fronteiras simbólicas da Amazônia, pois a maior parte deste espaço não compartilha floresta tropical.
A região caracteriza-se ainda por ser politicamente instável, heteroglóssica, pelas nacionalidades de conveniência e pela expressiva presença estrangeira desde o século XVI.
Assim, a principal ameaça à fronteira norte parece ser o vazio de propostas para lidar com estas características inerentes à região que internacionalizada já é.
A intensificação da atuação das chancelarias na Guiana e no Suriname, a efetivação dos processos de integração regional e a harmonização dos interesses nacionais com o regime dos povos indígenas são algumas das estratégias que podem equacionar uma das mais antigas estratégias dos Impérios: dividir para dominar.

Felipe Kern Moreira é Professor da Universidade Federal de Roraima – UFRR e doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB (felipe.kern@gmail.com).

Internacionalização do Mundo

Discurso do Ministro Brasileiro da Educação nos EUA

Este discurso merece ser lido, afinal não é todos os dias que um brasileiro dá um 'baile' educadíssimo aos Americanos...
Transcrição do Brasileiro Original
Durante um debate numa universidade dos Estados Unidos o actual Ministro da Educação CRISTOVAM BUARQUE foi questionado sobre o que pensava da internacionalização da Amazónia (ideia que surge com alguma insistência nalguns sectores da sociedade americana e que muito incomoda os brasileiros).
Um jovem americano fez a pergunta dizendo que esperava a resposta de um Humanista e não de um Brasileiro.
Esta foi a resposta de Cristovam Buarque :
”De fato, como brasileiro eu simplesmente falaria contra a internacionalização da Amazónia. Por mais que nossos governos não tenham o devido cuidado com esse património, ele é nosso.
Como humanista, sentindo o risco da degradação ambiental que sofre a Amazónia, posso imaginar a sua internacionalização, como também a de tudo o mais que tem importância para a humanidade.
Se a Amazónia, sob uma ética humanista, deve ser internacionalizada, internacionalizemos também as reservas de petróleo do mundo inteiro... O petróleo é tão importante para o bem-estar da humanidade quanto a Amazónia para o nosso futuro. Apesar disso, os donos das reservas sentem-se no direito de aumentar ou diminuir a extracção de petróleo e subir ou não seu preço.
Da mesma forma, o capital financeiro dos países ricos deveria ser internacionalizado. Se a Amazónia é uma reserva para todos os seres humanos, ela não pode ser queimada pela vontade de um dono ou de um país. Queimar a Amazónia é tão grave quanto o desemprego provocado pelas decisões arbitrárias dos especuladores globais. Não podemos deixar que as reservas financeiras sirvam para queimar países inteiros na volúpia da especulação.
Antes mesmo da Amazónia, eu gostaria de ver a internacionalização de todos os grandes museus do mundo. O Louvre não deve pertencer apenas à França. Cada museu do mundo é guardião das mais belas peças produzidas pelo génio humano. Não se pode deixar esse património cultural, como o património natural Amazónico, seja manipulado e destruído pelo gosto de um proprietário ou de um país.
Não faz muito tempo, um milionário japonês, decidiu enterrar com ele, um quadro de um grande mestre. Antes disso, aquele quadro deveria ter sido internacionalizado.
Durante este encontro, as Nações Unidas estão realizando o Fórum do Milénio, mas alguns presidentes de países tiveram dificuldades em comparecer por constrangimentos na fronteira dos EUA. Por isso, eu acho que Nova York, como sede das Nações Unidas, deve ser internacionalizada. Pelo menos Manhattan deveria pertencer a toda a humanidade. Assim como Paris, Veneza, Roma, Londres, Rio de Janeiro, Brasília, Recife, cada cidade, com sua beleza específica, sua história do mundo, deveria pertencer ao mundo inteiro.
Se os EUA querem internacionalizar a Amazónia, pelo risco de deixá-la nas mãos de brasileiros, internacionalizemos também todos os arsenais nucleares dos EUA. Até porque eles já demonstraram que são capazes de usar essas armas, provocando uma destruição milhares de vezes maior do que as lamentáveis queimadas feitas nas florestas do Brasil.
Nos seus debates, os actuais candidatos à presidência dos EUA têm defendido a ideia de internacionalizar as reservas florestais do mundo em troca da dívida. Comecemos usando essa dívida para garantir que cada criança do Mundo tenha possibilidade de COMER e de ir à escola. Internacionalizemos as crianças tratando-as, todas elas, não importando o país onde nasceram, como património que merece cuidados do mundo inteiro. Ainda mais do que merece a Amazónia. Quando os dirigentes tratarem as crianças pobres do mundo como um património da Humanidade, eles não deixarão que elas trabalhem quando deveriam estudar, que morram quando deveriam viver.
Como humanista, aceito defender a internacionalização do mundo. Mas, enquanto o mundo me tratar como brasileiro, lutarei para que a Amazónia seja nossa.Só nossa!”
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domingo, 13 de abril de 2008

LIBERALISMO

Liberalismo: Corrente política que se afirma na Europa, mas também na América do Norte a partir de meados dos século XVIII. Combate o intervencionismo do Estado em todos os domínios. Na economia defende a propriedade e a iniciativa privada, assim como a auto-regulação económica através do mercado. Na política preconiza um Estado mínimo confinado a simples funções judiciais e de defesa.

O pensamento liberal é marcado por uma enorme diversidade de ideias, que foram evoluindo de acordo com a própria sociedade. John Lock conta-se entre os pioneiros do liberalismo, ao defender um conjunto de direito naturais inalienáveis do indíviduo anteriores à própria sociedade: a liberdade, a propriedade e a vida. Entre as grandes referências clássicas do pensamento liberal, conta-se entre outros:

Adam Smith (1723-1790): O papel do Estado na económica devia de ser reduzido, sendo esta confiada à auto-regulação do mercado. O Estado deve limitar-se a facilitar a produção privada, a manter a ordem pública, fazer respeitar a justiça e proteger a propriedade. Smith defende ainda a concorrência entre os privados, num mercado livre, acreditando que os seus interesses naturalmente se harmonizariam em proveito do colectivo.

Jeremy Bentham (1748-1832): Defende uma concepção optimista da iniciativa privada, ao afirmar que quando um indíviduo trabalha para concretizar os seus objectivos económicos, está igualmente a contribuir para o desenvolvimento da riqueza de todos. O Estado devia evitar interferir no desenvolvimento da sociedade, limitando-se a função judiciária e a garantir a segurança da riqueza adquirida pelos parrticulares.

Edmund Burke (1729-1797): O Estado é o pior inimigo da sociedade e da riqueza colectiva. Condena qualquer tipo de intervenção do Estado na Economia.

Thomas Malthus (1766-1834): Muito popular no início do século XIX afirma claramente que o Estado devia limitar-se a proteger os mais ricos, recusando quaisquer direitos aos pobres. O único conselho que lhes dá é que não se reproduzam.

Wilhelm Von Humboldt (1767-1835): O crescimento do Estado é associado ao mal. O aumento da burocracia só pode gerar a ruina dos cidadãos. Humboldt defende um Estado mínimo.

John Suart Mill (1806-1873): A principal função do Estado é a de procurar promover as melhores oportunidades de desenvolvimento pessoal e social para todos os indivíduos, nomeadamente através da educação. Não devia ser aceite a intervenção do Estado em coisas que os indivíduos sejam capazes de resolver por si.
O liberalismo tinham três grandes exemplos para mostrar a concretização destas ideias: a Revolução Inglesa, a Revolução Americana e a Revolução Francesa. Esta última estava longe de ser consensual dado que terminara numa sucessão de ditaduras e numa enorme matança que destruiu muitos países europeus, como a Rússia e Portugal.
Século XIX
O Liberalismo dominou a política Europeia e dos EUA no século XIX, mas nem sempre foi fiel a seu combate contra o intervencionismo estatal.
Na primeira metade do século, os liberais são acérrimos defensores da propriedade privada, da economia de mercado e da liberdade de comércio internacional. Pugnam pelo fim das corporações, a des-regulamentação do trabalho, defendem as liberdades políticas, o governo representativo, etc. O Estado devia ser reduzido à sua expressão mínima, limitando-se a assegurar as condições para o pleno desenvolvimento da economia privada, promovendo a criação de infra-estruturas (estradas, transportes, etc), áreas onde as possibilidades de obtenção de lucro eram mínimas.
Na segunda metade do século XIX, os liberais passam a exigir que o Estado garantisse a protecção do mercado interno face à concorrência internacional. No final do século reclamam a intervenção do Estado na conquista de novos mercados internacionais e o acesso a regiões com recursos naturais. O Liberalismo passa a andar associado ao Imperialismo. É nesta fase que o Liberalismo incorpora o "Darwinismo social", isto é, a concepção de que o Estado deve apenas centrar-se em criar as condições para que os mais aptos prevaleçam sobre os mais fracos. O Estado deve estar ao serviço dos ricos e poderosos ( os mais aptos) e manter na ordem os mais fracos ( os operários, camponeses, etc).
Século XX
O liberalismo acabou por conduzir a sociedades europeias liberais para a guerra. As revoltas e revoluções sucedem-se. No plano internacional, a Iª, Guerra Mundial (1914-1918), mergulha as sociedades no caos. A crise de 1929 abala ainda mais toda a confiança no mercado. Como reacção aos excessos do liberalismo, nos anos 20 e 30 emergem regimes totalitários em nome defesa dos interesses colectivos. A preocupação com as políticas sociais e a regulamentação do mercado estava na ordem do dia. Os Estados crescem em número de funcionários e desdobram-se em múltiplas funções. O Estado-Providência consegue assegurar o Bem Estar à maioria da população em muitos países que o implantam.
Em finais dos anos 70, o liberalismo volta a ressurgir. Em nome da globalização apela-se à liberdade de comércio internacional, ao fim do proteccionismo. A fim de tornar mais atractivos os países para investidores nacionais e estrangeiros, apela-se à redução dos impostos, ao fim da intervenção do Estados em muitos sectores agora potencialmente lucrativos (saúde, educação, transportes, energia, comunicações, água, etc). Ao Estado-Providência passa a opôr o Estado-Mínimo. Após duas décadas de políticas liberais, constata-se que as desigualdades entre os países aumentaram ( os ricos e os pobres estão agora mais distantes), as políticas sociais foram reduzidos à sua mínima expressão em muitos países.
No plano teórico os liberais incorporaram nos anos 70 a questão dos direitos humanos, e passam a servir-se desta argumentação defenderem coisas muito distintas como o fim das ditaduras, a abertura de mercados, a livre circulação de mercadorias e pessoas, etc.
Entre os novos teóricos liberais, destaca-se John Rawls.
As ideias liberais, malgrado os ataques que continuam a ser alvo, continuam a ser largamente seguidas pelos povos mais diversos no mundo, nomeadamente devido à valorização que fazem do papel dos indivíduos na sociedade e à defesa da liberdade que proclamam.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

A Igreja Católica na Construção da Europa

Como os debates da Constituição Europeia e Tratado de Lisboa mostram, a Europa vive uma grave crise de identidade. A origem profunda está num antigo mito que o volume A Vitória da Razão (Random House, 2006; Tribuna da História, 2007) do grande sociológico da religião Rodney Stark se esforça por destroçar. O subtítulo indica-o claramente: "Como o Cristianismo gerou a liberdade, os direitos do homem, o capitalismo e o milagre económico no Ocidente."
Esta ideia não surpreende. Dado que a Europa criou os valores da sociedade moderna e é uma zona cristã, seria muito estranho não existir uma relação estreita entre esta origem e aqueles efeitos. Apesar disso é preciso afirmá--lo, porque segundo a tese comum, a Igreja manteve o continente na obscuridade e miséria durante séculos até que a emancipação, com o Humanismo e Iluminismo, permitiu a ciência, liberdade e prosperidade actuais. Esta visão, divulgada por discursos, livros de escola e tratados de História, é simplesmente falsa.
Pelo contrário, a Igreja Católica, vencendo o paganismo obscurantista e civilizando os bárbaros, foi uma poderosa força dinâmica, estabelecendo os valores de tolerância, caridade e progresso que criaram a sociedade contemporânea. A Idade Média, conhecida como "Idade das Trevas", foi uma das épocas de maior desenvolvimento e criatividade técnica, artística e institucional da História.
Os filósofos humanistas e iluministas posteriores repetiram, em boa medida, ideias medievais. Esta tese está longe de ser original (ver, por exemplo R. Pernoud, 1979, Pour en Finir avec le Moyen Age, Ed. du Seuil; S. Jaki, 2000, The Savior of Science, William B Eerdmans Pub. Co; T. Woods, 2005, How the Catholic Church Built Western Civilization, Regnery Pub.), mas continua oculta debaixo do persistente mito.
As razões desse engano são muito curiosas. Como explica Stark, todas as ditaduras exploram o povo para criar obras grandiosas à magnificência dos tiranos. Foi assim Roma e os reinos orientais. Destroçado o despotismo com a queda do império, a Cristandade gerou um surto de criatividade prática, pois as populações não temiam a pilhagem dos ditadores. Assim as realizações da Idade Média resultaram em melhorias da vida das aldeias, não em monumentos que os renascentistas poderiam admirar. Por isso esses intelectuais posteriores, nos seus gabinetes, desprezaram uma época sem mausoléus, enquanto louvavam as tiranias de que só conheciam a arquitectura e erudição.
Os avanços conseguidos na chamada Idade das Trevas são impressionantes, todos dirigidos a melhorar a vida concreta (op. cit. c. II): ferraduras, arado, óculos, aquacultura, afolhamento trienal, chaminé, relógio, carrinho de mão, etc. A notação musical, arquitectura gótica, tintas a óleo, soneto, universidade, além das bases da ciência, a separação Igreja-Estado e a liberdade dos escravos (c. III) são também criações medievais. Em todos estes avanços, e muitos outros, têm papel decisivo mosteiros, conventos e escolas da catedral, bem como a confiança da teologia cristã no progresso, contrária à de outras culturas.
Mais influente, nos séculos XI e XII em Itália nasceu o capitalismo (c. IV), sistema que suporta o desenvolvimento, e que tantos ainda julgam ter origem oitocentista e protestante. A prosperidade mercantil e bancária então conseguida gerou verdadeiras multinacionais que promoviam a manufactura e comércio na Europa saída do feudalismo. Depois a peste negra, a guerra e os déspotas iluminados, retornando à pilhagem clássica, destruíram esse florescimento e levaram os filósofos tardios a pensar ter descoberto o que os antepassados praticavam.
Nessa reconstrução perderam-se alguns elementos centrais da versão católica inicial. Por exemplo, no século XII, "cada vez que faziam ou reviam um orçamento era criado, com algum capital da empresa, um fundo para os pobres. Estes fundos aparecem registados em nome 'do nosso bom Senhor Deus' (...) quando uma empresa era liquidada, os pobres eram sempre incluídos entre os credores" (p.167)

Artigo de Opinião: João César das Neves (DN)

História, Interesses e Verdades Sobre o Tibete

por Elias Jabbour*

A “mão invisível do mercado” ou algum “hedge fund” teria condições de alçar o progresso social e material de uma localidade como o Tibete, longe da soberania chinesa? Algum monge profeta de uma futura “independência do Tibete” ou qualquer intelectual orgânico do status quo reinante ou algum (a) jornalista brasileiro correspondente na China aceitariam enfrentar este debate? Alguma consideração fora das palavras de ordem ditadas em algum “instituto de estudos chineses” ou em redacções dos jornalões do imperialismo, ambos localizados no centro do sistema?

Como geógrafo e pesquisador ocupado há quase 15 anos com a temática chinesa, já tive acesso a diversos mapas da China produzidos na Europa ou nos EUA antes de 1949. Em todos eles o Tibete é contemplado como parte da China. O que será que ocorreu há 60 anos para cá? Muita coisa mudou, interesses estão em jogo, inclusive a China não é o mesmo país da década de 1940. Muito pelo contrário.
Questões que devem ser respondidas

Antes de qualquer coisa, acredito ser interessante a resposta a algumas perguntas políticas, pois a descaracterização do Tibete como parte inalienável do território só pode guardar conotação política: você advogaria em favor da legalização de uma sanguinária “teocracia escravista” aliada ao imperialismo que, para bem do povo Tibetano, foi desmantelada e desarmada em 1951 com a retomada da soberania chinesa sobre o Tibete? O mais ferrenho anticomunismo justifica tal defesa? Ou tal defesa só é justificável, justamente por uma postura de classe reaccionária e na contramão da ampliação dos mínimos direitos humanos, a começar pelo direito à vida? Resumindo, a quem interessa a divisão de países como a Jugoslávia, a ex-URSS e da China?

Vamos nos render às imagens de monges revoltados alimentados ideologicamente por um multimilionário financiado pela CIA (Dalai Lama: alguém já procurou saber quem financia os milhares de exemplares de suas receitas espalhadas por livrarias do mundo inteiro?) ou nos deteremos à verdade historicamente construída e concebida, para quem o Tibete é parte da China há mais de sete séculos? Trata-se de um conflito entre um povo nacionalmente oprimido, ou entre duas coligações sociais e entre interesses internacionais distintos? Ou é legítimo o projecto do Dalai Lama de construção de um “Grande Tibete” incluindo territórios hoje pertencentes a China, a Índia e ao Nepal? (1)

Bom, a bem da sensatez e da verdade histórica, reflectir sobre tais questões.
Oposição histórica ao governo central

Confesso que não fui assaltado por grandes surpresas ante os acontecimentos da semana passada em Lhasa, capital do Tibete. Grande parte dos monges residentes no Tibete nada tem de contrário à soberania chinesa sobre a região. Outra parte, mais radicalizada e afeita à liderança de Dalai Lama, sempre esteve disposta a enfrentar o governo chinês. Estiveram à frente da grande revolta, que degenerou em grandes conflitos entre os anos de 1959 (ano em que Dalai Lama se exilou na Índia) e 1961, inclusive com a participação de guerrilheiros Tibetanos, treinados no estado norte-americano do Colorado e lançados de pára-quedas em território chinês, juntamente com armas e aparelhos de retransmissão (2).

Naquele momento, as revoltas contra o governo central iniciaram-se em 1956, quando o governo, após reorganizar o mapa do país e transformar o Tibete e outras regiões de minorias étnicas em “regiões autónomas”, partiu para a radicalização de reformas como a agrária e do direito; reformas encetadas justamente contra as bases económica e política da então classe dominante Tibetana (3). Aliás, os actuais distúrbios têm como objectivo lembrar o início das revoltas de monges Tibetanos contra as reformas democráticas, em 1959.

Abrindo parêntese, Duarte Pereira nos alerta que, em 1956, o actual Dalai Lama – ao discorrer acerca da concentração de renda na região – na sua autobiografia, chama atenção para o facto de que no Tibete, o governo local detinha e administrava directamente 38,9% das terras da região, os mosteiros 36,8%, os aristocratas leigos, 24% e os camponeses 0,3% restantes (4). Foi contra esse estado de concentração económica e política que as reformas democráticas encampadas pelo governo central, na segunda metade da década de 1950, se dirigiam; com a oposição das mesmas camadas sociais que foram às ruas de Lhasa na semana passada.

Dalai Lama condecorado por Bush

Retornando, exemplo semelhante reside nos acontecimentos de Abril de 1989 também em Lhasa – e alguns meses antes dos lamentáveis ocorridos em Tiananmen –, quando o actual residente chinês, Hu Jintao, então governador da região autónoma, impôs a lei marcial como resposta ao levantamento. Em 1989, mesmo defendendo o direito da Índia de dispor de bombas nucleares, ironicamente, Dalai Lama, foi condecorado com o Prémio Nobel da Paz. Além de uma ofensa a qualquer mente pensante deste mundo, tratou-se de uma verdadeira condecoração política, circundada pela débacle do sistema socialista europeu e soviético.

Assim sendo, sem medo de ser superficial ou leviano, os interesses saídos do porão por parte dos monges rebeldes da semana passada, em nada diferem dos interesses defendidos por eles mesmos, no meio de distúrbios provocados na posteridade imediata da reocupação chinesa sobre a região no início da década de 1950. Existem, portanto, dois grandes interesses internos ao Tibete em jogo, que se entrelaçam por uma questão de maior envergadura residente na luta do imperialismo contra a unidade nacional da última política fronteira a ser aberta pós-1990. Não são nenhuma fantasia as elucubrações da extrema-direita norte-americana, da necessidade de se levar adiante a fragmentação da China em sete países. Além disso, é intolerável a existência de um partido comunista no poder num país com a importância e crescente influência da China. Eis o “x” da questão.

Neste sentido é muito significativo o facto de George Bush, em Setembro de 2007, ter sido o primeiro presidente norte-americano na atribuição de suas funções, a receber Dalai Lama na Casa Branca. Não somente isso, em seguida o acompanhou e entrou de mãos dadas com o mesmo no Congresso para a entrega – ao Dalai Lama – da Medalha de Ouro do Congresso dos Estados Unidos, maior honraria civil do país. Diga-se de passagem, maior honraria civil outorgada ao herdeiro de uma das formas mais brutais e cruéis de governo da história da humanidade. Sob este prisma, interessante é a lembrança feita por Domenico Losurdo (em “Fuga da história?”) de opinião emitida nada mais nada menos que no “Livro Negro do Comunismo”, para quem na sua página número 509 pode ser encontrada a seguinte observação: “uma elementar análise histórica é suficiente para destruir o mito unânime alimentado pelos partidários do Dalai Lama”. Pelo andar da carruagem, actualmente, não existe nenhum interesse nesta desconstrução.

Voltando, dois elementos devem vir à tona hoje:
1) O Tibete é a região chinesa com índices de desenvolvimento humano e económico com maior expansão nos últimos cinco anos e acompanhado por um aumento substancial na influência local tibetana sob os assuntos da região e,
2) Existe um esgarçamento imperialista internacional sobre os dois principais elos débeis do sistema, a América Latina (vide Plano Colômbia e a ofensiva contra a política de integração sul-americana) e a própria Ásia (recente aliança militar EUA-Japão, retoma de vendas de armas a Taiwan, mobilização de intelectuais europeus e norte-americanos pelo boicote aos jogos olímpicos de Pequim etc.).


Soberania historicamente irrefutável

A unidade e a formação territorial chinesa, fruto dos intercâmbios económicos, políticos e culturais entre a etnia maioritária han e as demais nacionalidades que hoje compõem a plêiade do conjunto da nação chinesa. A China nunca tivera uma vocação expansionista, sendo que a absorção de territórios e culturas foi um processo marcado por três características:
1) longo tempo histórico entre o contacto inicial entre diferentes povos (han com mongóis, Tibetanos, uigures) e a incorporação territorial em si,
2) as mediações e processos que possibilitaram a incorporação de novos povos ao Império Chinês sempre fora marcadas por tratados comerciais e de protecção militar e,
3) a anexação de novos territórios somente ocorreu em momentos em que a China fora governada por dinastias estrangeiras (mongol e manchu).

O reino tibetano do Tubo foi formado no século 7 d. C., momento em que dois descendentes e soberanos se casaram com princesas Han, firmaram acordos de variados tipos com o Império Chinês e aceleraram o intercâmbio cultural e económico entre as duas nacionalidades (5). Prova disso são os telhados das construções existentes no Palácio de Verão em Pequim, onde o tom amarelo dos telhados lembra os dos mosteiros visitados com frequência por representantes do Império Chinês ao Tibete. Passaram-se cerca de seis séculos entre a formação do reino do Tubo e a incorporação do Tibete ao território chinês pela dinastia mongol (yuan); revoltas de fanáticos religiosos como as de hoje, levaram à morte o rei do Tubo no século 9 d. C., e foram seguidas por quase 400 anos de guerras entre mosteiros e principados.

Anotações de Marco Pólo datadas da época de sua visita à corte de Kublai Khan, (imperador mongol da China) dão conta do Tibete ser uma das 12 províncias que formavam o Império Chinês. Uma série de outras evidências históricas, poderiam ser citadas para demonstrar a legitimidade da soberania chinesa na região. O espaço não permite tanto, mas permite lembrar que desde o século XIII nenhum país reconhece o Tibete como território separado da China, assim como desde o século XVIII as nomeações de autoridades regionais com status religioso e político, (por exemplo, o Dalai Lama e o Panchen Lama) deveriam ser subscritos pelo governo central. Aliás, o próprio entrelaçamento entre poder religioso e público surgiu no Tibete, ainda no século XIII, numa arrumação institucional que pudesse contemplar os interesses regionais (muito relacionados à religião) com os ligados ao Império como um todo, é produto da soberania chinesa (6).

Nada disso interessa ao status quo internacional actual; o pensamento liberal é essencialmente a-histórico.
Império britânico e da discórdia

O início do declínio da soberania chinesa sobre o Tibete é concomitante com a perda de sua própria autonomia, a partir das Guerras do Ópio ocorridas entre 1839 e 1842 contra a Inglaterra, que naquela época era a porta-voz dos traficantes internacionais de drogas, e que, foi a guerra pela manutenção das rotas marítimas e terrestres da droga manufacturada na Índia. A China, a partir de então, foi reduzida a uma semi-colónia agredida e dilacerada por potências que hoje, ironicamente, advogam o respeito pelos “direitos humanos” e pela “independência” do Tibete. Essa observação também não interessa ao status quo internacional actual. Para quê?

O enfraquecimento nacional chinês levou, por exemplo, a Rússia czarista a ocupar a porção norte da Mongólia e formar a chamada “Mongólia Exterior”, que posteriormente na década de 1920, após um golpe bolchevique planeado por Lenine, passou a chamar-se República Popular da Mongólia; o Japão veio a ocupar o nordeste do país (Manchúria), estabelecendo uma monarquia títere (Qing) posteriormente derrubada pelo movimento republicano de 1911. A própria Inglaterra investia sobre o território chinês tanto pelo litoral sul, quanto pela via das suas então colónias Índia, Nepal e Butão, em direcção ao Tibete. Tentativas de invasões ocorreram nos anos de 1888 e 1903, seguidas pelo Tratado de Lhasa, onde os chineses, além de reparações milionárias, tiveram de garantir acesso a rotas comerciais, via Índia, à Inglaterra, além de permitir o estacionamento de tropas inglesas, instalação de postos de correios e telegráficos, e a autorização (para a Inglaterra) de manejar as relações exteriores do Tibete (7). O que significa dizer, perda quase completa de soberania sobre a região em prol dos interesses comerciais e políticos ingleses no sul da Ásia. Uma forma de reduzir o Tibete ao status antes proferido à Índia, logo a semente da discórdia em prol de uma independência da região fora lançada, com alcance estratégico sentido até aos dias de hoje. Melhor, nos próprios acontecimentos da última semana.

A semente da discórdia plantada pela presença britânica no Tibete, pode ser sentida no ódio reservado pelos monges aos estabelecimentos comerciais de chineses da etnia maioritária han. Analogia histórica deve ser feita ao ódio religioso entre hindus e muçulmanos na Índia que transbordou na formação de três países separados (Índia, Paquistão e Bangladesh) após a retirada inglesa na década de 1940. Em ambos os casos, han e tibetanos no Tibete e hindus muçulmanos na Índia, as diferenças viveram com concórdia durante os séculos que antecederam a ocupação real britânica. O império britânico foi um grande factor de desestabilização regional, sentida com dor, sangue e lágrimas até os dias recentes.

Volto a repetir: Nada disso interessa ao status quo internacional actual; o pensamento liberal é essencialmente a-histórico.

Pedra no tabuleiro dos interesses norte-americanos

Enfraquecer o já extenuado exército comunista, com a intenção de acelerar uma mudança de governo em Pequim, este era o claro objectivo da inteligência norte-americana com o aumento de sua intervenção política no Tibete após 1947, momento em que já era clara a vitória do PCC sobre o Kuomintang na guerra civil. Neste contexto é significativo o envio, por Mao Tsetung, de um de seus chefes militares mais experimentados (um tal de Deng Xiaoping) ao sudoeste do país com a intenção de – rapidamente – se apoderar militarmente do “teto do mundo”.

O Tibete aos olhos do imperialismo tem uma importância que evoluiu com o tempo: durante a Guerra Fria, a sua independência poderia servir de bastião obscurantista, num continente onde as lutas entre socialismo e capitalismo ocorreram de forma mais sangrenta e, quase, sempre com epílogo em favor dos comunistas. Actualmente, poderia servir, além de base de missões e de bases militares, como um “Estado tampão”, entre os dois gigantes desenvolvimentistas asiáticos, a Índia e a China. Daí a corda dada (bilhões de US$) ao projecto de Dalai Lama de constituição de um “Grande Tibete”, como já citado, incluindo territórios hoje pertencentes a China, a Índia e ao Nepal e a um custo político cujos cálculos mereceriam ser feitos. Não se trata de vazão a teorias conspiratórias ou coisa do tipo. A realidade está aí a nos estatelar com os exemplos de Kosovo e da região da “meia-lua” boliviana, dois lugares onde a inteligência e diplomacia norte-americanas trabalham de forma incessante. Que me provem o contrário.

Neste sentido, Domenico Losurdo faz-nos saber de um intrigante comunicado enviado ao então presidente dos EUA, Truman no ano de 1947, pelo então encarregado dos negócios dos EUA em Nova Délhi, George Merrel, para quem chama a atenção acerca da “inestimável importância estratégica” da região – teto do mundo: “(...) o Tibete pode, portanto, ser considerado um bastião contra a expansão do comunismo na Ásia ou, pelo menos, como uma ilha de conservadorismo num mar de desordens políticas. (...) o planalto tibetano (...) em época de guerra de mísseis, pode revelar-se o território mais importante de toda a Ásia” (8).

Aprendemos em filosofia marxista que o todo é reflexo do concreto, que por sua vez pode ser dividido em partes. Mais, na parte em sua essência o todo pode ser perfeitamente observado. Assim, para quem trabalha munido da verdade demonstrada pela história, deve antes de tudo, reflectir em primeiro lugar se o imperialismo se demoveu de seus interesses estratégicos na Ásia, do qual o Tibete é parte (vejamos o tratamento dispensado recentemente por Bush e o Congresso dos EUA a Dalai Lama) e em segundo lugar, se da mesma forma como no final da década de 1950, os ocorridos recentemente em Lhasa não são casáveis com os interesses norte-americanos na região, que envolve a contenção da China pela rota da ocupação do Afeganistão e o Iraque. Impossível melhor localização geográfica que o Tibete para produzir transtornos ao governo popular de Pequim. E dentro da China.
Cultura e avanços sociais
Muita gente honesta, de esquerda inclusive, poderá aludir a bandeira da presença no Tibete de uma questão nacional, centrada na necessidade da preservação cultural e da identidade nacional tibetana que poderá incluir o direito ao Tibete de gozar de independência. Em primeiro lugar em resposta a este tipo de questão que poderá ser aludida nalgum momento, os defensores da soberania chinesa sobre aquela região deverão reconhecer que inúmeros abusos foram cometidos contra as características culturais tibetanas – principalmente em afronta a seus traços mais obscurantistas – durante a Revolução Cultural (1966-1976). Mas é bom salientar que, quem esteve à frente das turbas juvenis durante esta horrível página da história da república popular, foram guardas vermelhos de nacionalidade tibetana.

Não resiste à prova empírica a “denúncia” feita por Dalai Lama no último domingo (15/03) acerca de um genocídio cultural no Tibete. A bem da verdade toda uma política afirmativa pro-tibetana está em curso na região desde 1990, momento este em que se instituiu a obrigatoriedade de o governador (que era da etnia han até 1990), ser de nacionalidade tibetana, 70% dos funcionários públicos idem, o bilinguismo foi recentemente introduzido e estimulado, com clara preferência pela língua tibetana, e a construção da primeira linha ferroviária ligando o Tibete ao resto do país, trouxe novo fôlego económico à região. Segundo Duarte Pereira, “Hoje quem visita o Tibete, pode ver por toda a parte os estandartes com sutras e os nichos com imagens sagradas. Existem 46 mil monges e freiras, cerca de 2% da população, e aproximadamente 1700 mosteiros religiosos foram recuperados. A tradição secular dos festivais religiosos foi retomada, e um grande movimento editorial vem publicando as escrituras sagradas e a literatura religiosa do budismo, nalguns casos pela primeira vez. A célebre epopeia tibetana do rei Gásar, foi recolhida da tradição oral e está sendo publicada pela primeira vez em vários idiomas” (9).

Um longo ensaio poderia ser feito para descrever os avanços sociais obtidos no Tibete nos últimos 50 anos, pronto para escancarar as diferenças entre uma teocracia esclavagista, apoiada pelos imperialismos britânico e norte-americano, em contraponto à democracia popular posta em prática na região: os seus analfabetos deixaram de ocupar 90% da sua população para menos de 20% em 2005; não existiam escolas públicas de primeiro ou segundo grau em 1950, hoje existem mais de 3.000; não existiam universidades, hoje conta com uma universidade e três grandes centros de pesquisas; não existiam direitos das mulheres, hoje elas ocupam cerca de 20% do funcionalismo público e 28% das vagas oferecidas na universidade. A população tibetana dobrou no período entre 1950 e 1990, fruto – também – de um aumento da expectativa de vida que variou de 35 anos em 1950 para 65 anos em 1990 (10).

Repito mais uma vez: Nada disso interessa ao status quo internacional actual; o pensamento liberal é essencialmente a-histórico.

Progresso versus retorno à Idade da Pedra

Não precisa ser militante comunista ou nutrir alguma simpatia pela China para perceber que longe da soberania chinesa, nenhum avanço económico, social e político, seria possível num país com as características sociais e geográficas como o Tibete. O caso da Índia é muito instigante: nem um crescimento robusto nos últimos 20 anos tem sido capaz de mudar a situação de milhões de párias sociais, nem garantir que quase 50% de sua população deixe de inflar os dados sobre analfabetismo no país.

A questão reside no fato de que a “lei do desenvolvimento desigual e combinado” teria o efeito de uma bomba, se o Tibete se tornasse um país independente. O Tibete é um país cuja maioria de sua população ainda vive de actividades primárias e na linha da sobrevivência. Citada lei (do desenvolvimento desigual e combinado) só pode ter proscrição nos quadros de um planeamento nacional e transferências centro versus periferia no interior do país, como na URSS dos primeiros planos quinquenais e a China de hoje.

A independência da região não garantiria a drenagem de bilhões de US$ em obras infra-estruturais hoje proveniente do governo central, afora outro montante de investimentos em variegados sectores como o da geração de energia eólica e o turismo. Seguramente, a independência do Tibete seria a senha ao retorno da região à Idade da Pedra, como ocorreu em diversas localidades da extinta URSS, África e América Central pós-Consenso de Washington (década de 1990).

Continuidade do progresso e afirmação nacional decorrentes de tal, ou um retorno à Idade da Pedra afiançado pelo imperialismo, eis o dilema tibetano.

Finalizando, a “mão invisível do mercado” ou algum “hedge fund” teria condições de alçar o progresso social e material de uma localidade como o Tibete, longe da soberania chinesa? Algum monge profeta de uma futura “independência do Tibete” ou qualquer intelectual orgânico do status quo reinante ou algum (a) jornalista brasileiro correspondente na China aceitariam enfrentar este debate? Alguma consideração fora das palavras de ordem ditadas em algum “instituto de estudos chineses” ou em redacções dos jornalões do imperialismo, ambos localizados no centro do sistema?
19 DE MARÇO DE 2008 - 19h05

Notas:

(1) Sobre este projeto do “Grande Tibete”, ler: GOLDSTEIN, Melvin: “The Dalai Lama`s Dilenma”. In, Foreign Affairs. January/February, 1998. pp. 83-97.
(2) LOSURDO. D. “Fuga da História?”. Editora Revan, 2004, p. 171. Losurdo baseia-se em dados contidos em: KNAUSS, John Kennedy: “Orphan of the Cold War. America and Tibet Struggle for Survival”. Political Affairs. New York, 1999. A fonte é insuspeita, pois Knauss foi agente da CIA com grande folha de serviços prestados na Ásia.
(3) GYAINCAIN. N. & JIAWEI, W.: “The Historical Status of China’s Tibet”. China Intercontinental Press. Beijing, 1995.
(4) PEREIRA, Duarte: “A polêmica sobre o Tibete”. In, LIMA, Haroldo (org.): “China: 50 anos de República Popular”, Anita Garibaldi, 1999, p. 105.
(5) Idem, p. 100.
(6) Ibidem, p. 101.
(7) GYAINCAIN. N. & JIAWEI, W.: “The Historical Status of China’s Tibet”. China Intercontinental Press. Beijing, 1995, p. 112.
(8) LOSURDO. D. “Fuga da História?”. Editora Revan, 2004, p. 170.
(9) PEREIRA, Duarte: “A polêmica sobre o Tibete”. In, LIMA, Haroldo (org.): “China: 50 anos de República Popular”, Anita Garibaldi, 1999, p. 108.
(10) Idem, p. 108 e Tibete Statistical Yearbook para todos os anos.
http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=34399

*Elias Jabbour, é Doutorando e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, membro do Conselho Editorial da Revista Princípios e autor de ''China: infra-estruturas e crescimento econômico'' 256 pág. (Anita Garibaldi).
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