domingo, 24 de agosto de 2008

Chegará a vez deles

Baptista Bastos
b.bastos@netcabo.pt

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No conflito que opõe a Geórgia à Rússia as explicações não parecem ser tão lineares quanto a comunicação social portuguesa nos propõe. Apesar de todo o cuidado posto nas frases, Carlos Santos Pereira foi, até agora, o único comentador que esclareceu a natureza da pendência.

Vou tentar resumir: desde 1990 que as Nações Unidas tutelam a Ossetia do Sul, e, desde 2003, os Estados Unidos têm um peão no presidente da Geórgia, Mikheil Saakachvili, o que permite a constituição de uma espécie de tenaz proliferante, com pontos "amigáveis" na Ucrânia, e a ameaça de instalação, pelos americanos, do sistema antimísseis, na República Checa e na Polónia.

Como retaliação, os russos anunciam apontar os seus mísseis à Ucrânia e à Polónia. Junte-se-lhe a questão dos combustíveis e adivinhar-se-á a crispação internacional, colocada ante uma outra face de uma outra Guerra Fria.

No "Diário de Notícias", Santos Pereira esclarece, citando George Friedman, director do Observatório de Análise Geopolítica: "Pela primeira vez desde o colapso da União Soviética, os russos lançaram uma acção militar decidida, e impuseram uma situação militar.

Fizeram-no de forma unilateral, e os países que olhavam para o Ocidente, para intimidar a Rússia, vêem-se agora obrigados a ter em conta o que aconteceu."

Tudo leva a crer que a exibição de força russa conduzirá a um recuo dos Estados Unidos.

Este é o eixo do problema. Sabe-se que, tanto na Ucrânia como na Geórgia, a intervenção dos americanos não se limitou ao envio de centenas de "assessores" militares: o investimento, naqueles países, de milhões e milhões de dólares não são demonstrações de compaixão nem expressões de solidariedade.

Seja quem for o próximo presidente, o legado deixado por Bush revela-se um bico-de-obra de difícil solução. E adiante-se que nenhum dos dois intervenientes está disposto à humilhação de uma derrota desacreditante. Por outro lado, a política externa francesa já exprimiu a gravidade do caso, ao mesmo tempo que inflecte para o lado da razão russa. Fê-lo com o melindre que o assunto envolve. Mas fê-lo.

Há uma extraordinária superficialidade no tratamento destas crises, por parte dos jornais, das rádios e das televisões portuguesas. A grande rábula da designada "visão ocidental dos acontecimentos" encobre ignorância, leviandade e cumplicidade.

A autêntica "visão" será a da procura da "verdade", o que quer que esta palavra hoje signifique. De facto, em todos os conflitos não existe uma razão unilateral. As responsabilidades cabem a muitas partes, inclusive aquelas que não aparecem à luz do dia. E não há "distanciação" possível quando a beligerância, nascida sempre de manobras políticas, atinge níveis como os registados nesta guerra.

Raras vezes a Imprensa (não só a portuguesa, mas sobretudo a portuguesa) foi ao fundo das questões. E o anticomunismo ainda se não desvaneceu do espírito da esmagadora maioria dos "comentadores", como se não houvesse outros e novos e surpreendentes temas e teses a merecer a sua atenção. O preconceito obnubila qualquer sentido crítico, por mais ténue que ele seja. Eles falam e escrevem como se o comunismo não tivesse acabado. Ou não acabou? Ou como se a Rússia estivesse a desenvolver potencialmente uma espécie de niilismo, resultante da nostalgia comunista. Tudo isto é ridículo.

A perspectiva na qual se colocam os "colunistas" permite que os consideremos ou ineptos, ou preguiçosos, ou ignorantes. Ou isso tudo, com canalhice à mistura.

Estamos a assistir a acontecimentos de conclusões imprevisíveis. A liberdade tem sido espezinhada em nome de uma paz falaciosa. Pouco sabemos, com rigor, das grandes transformações por que passa parte substancial da América Latina, e das dificuldades tremendas com que se deparam os governos não submissos ao "diktat" dos EUA.

A nossa comunicação social, neste como em numerosos e vários casos, emudece, ou faz pender a balança da informação e da análise para um só lado. Não é só um erro profissional: é uma estrebaria moral, um ultraje deontológico e uma perfídia abjecta.

O descrédito que tombou sobre a nossa Imprensa, a quebra avassaladora das tiragens, deve-se, grandemente, à perda dessa unidade fundamental entre o jornal e o leitor.

Muitos portugueses lêem e falam francês, inglês e alemão.

É absurdo ignorar esta vertente do conhecimento. Encontram na Imprensa estrangeira o que nem por sombras é publicado na de cá. Haverá "felicidades diferentes", como reconhecia Camus.

Porém, verdades impostas pela multiplicação de manipulações, de omissões e de enganos, são difíceis de manter por tempo excessivo. Entre a separação e a comunhão, o leitor avisado tem escolhido a primeira.

A semelhança entre os jornais, a ausência de causas, a uniformidade do estilo, a "distanciação", a morte da paixão em favor da gelidez da prosa, o mesmo registo filosófico e análogas "linhas" editoriais afugentaram milhares e milhares de leitores. Ancilosados na superstição de que aquilo que escrevem faz opinião, muitos directores de jornais (e lembro-me, neste momento, de alguns, por igual desprezíveis) não entendem que, mais cedo ou mais tarde, os seus "serviços" serão dispensados.

Chegará a vez deles. Para parafrasear um famoso editorial do "Jornal Novo".

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