sábado, 19 de abril de 2008

A Queda do Dólar

A queda do dólar:aspecto pouco discutido da crise actual

François Chesnais (*)

A situação actual toma agora claramente as características daquilo que os economistas keynesianos ou “regulacionistas” denominam como uma “crise sistémica”. Ela tem numerosas dimensões, das quais três são desde já particularmente importantes. São elas a crise do sistema bancário, a alta nos preços de um crescente número de matérias-primas e a baixa na taxa de câmbio do dólar. Actualmente, é a primeira que tem atraído mais atenções e que é objecto do maior número de intervenções governamentais (em sentido lato, que inclui as dos Bancos centrais “independentes”), sob a forma de baixa das taxas de juros e da criação de nova liquidez. O termo “crise do sistema bancário” designa o enfraquecimento da capacidade de criação de crédito dos bancos. A oferta permanente de crédito comercial e os adiantamentos para investimento representaram, tradicionalmente, as duas facetas da função primordial que os bancos deveriam assegurar para o bom funcionamento da acumulação capitalista. Esta função foi já em grande parte desviada, sob a forma de uma orientação do crédito a favor dos operadores da Bolsa, bem como de estratégias deliberadas de endividamento dos particulares para o consumo ou a aquisição imobiliária.
As grandes empresas puderam virar-se para os mercados obrigacionais e vender títulos de dívida aos fundos de investimento, mas as pequenas empresas ressentiram-se fortemente das escolhas feitas pelos bancos em matéria de crédito. A partir dos inícios dos anos 2000, os bancos desmultiplicaram todo este crédito postiço, transformando os activos em “títulos” vendidos a outros operadores. Com isso apagava-se-lhes o rasto nos livros de contas. São estas estratégias que hoje fazem “boomerang”, à medida que o poder de compra das famílias (logo a sua solvabilidade) baixa e que as dívidas se revelam incobráveis. A intervenção coordenada, a 13 de Dezembro, dos Bancos centrais de cinco países ou regiões (o Fed norte-americano, o B.C.E., o Banco de Inglaterra, o Banco Suíço e o Banco do Canadá) é uma nova tentativa de salvar os grandes bancos da falência e de circunscrever a amplitude da destruição da sua capacidade de fornecer crédito, mesmo aos seus clientes preferidos e mesmo uns aos outros.
Não aprofundaremos aqui a questão das causas e efeitos da alta dos preços das matérias-primas. Digamos, simplesmente, que esta alta é, em si mesma, um factor de recessão, que torna particularmente importante a existência de um sistema de crédito “são”, tornando a tarefa dos Bancos centrais ainda mais difícil, pois que as suas políticas foram formatadas para garantir uma estabilidade dos preços exigida para maximizar as rendas financeiras.
Queda do dólar, alta do euro
“Pânico a propósito do dólar”, tal era o título do número de 29 de Novembro do semanário da City, ‘The Economist’. Porquê exprimir uma tal inquietação? Desde o mês de Agosto, o dólar baixou 6% em relação às principais divisas mundiais tomadas no seu conjunto. Não haveria aí nada de particularmente notável ou inquietante para os responsáveis financeiros norte-americanos e mundiais se esta baixa não se inscrevesse num movimento de baixa muito mais longo e durável. Ora, desde 2002 e até ao começo da actual crise dos créditos hipotecários, a taxa de câmbio do dólar tinha já baixado cerca de 20%, em pequenos patamares sucessivos. Em cinco anos, o dólar perdeu mais de 25% do seu valor. Estamos manifestamente na presença de um movimento que não é apenas conjuntural. Ele vem de longe e tem raízes estruturais, agravadas por uma crise de confiança caracterizada numa parte, pelo menos, do sistema financeiro norte-americano.
Antes de tratar desse assunto, detenhamo-nos um pouco na questão do euro. O movimento de depreciação do dólar foi ainda mais forte no confronto directo com o euro. Este último gozou progressivamente, ao longo dos anos, do estatuto bem ambíguo de divisa garante de uma certa estabilidade e de rendimentos de colocação crescentemente “atractivos”. Por um momento, em 2002, o euro valeu 86 cêntimos de dólar. Hoje em dia, a taxa é superior a 1 dólar e 48 cêntimos, tendo-se já aproximado do 1 euro e 49 cêntimos. A situação muito desconfortável dos países membros da zona euro resulta do facto de que o sistema capitalista mundial passa por uma fase de transição e de crise nas relações entre as principais moedas. Mas resulta também da fraqueza e da divisão entre as burguesias europeias. A apreciação do euro andou a par do crescimento da sua participação nas reservas monetárias dos bancos centrais de todo o mundo (o quadro junto mostra-nos que ele foi um pouco superior a sete pontos percentuais). Ela fez-se a expensas do dólar, mas também do yen, em função da persistente crise bancária japonesa. Mas este crescimento não é ainda suficientemente forte para que as empresas europeias possam impor o euro como moeda de referência e meio de transacção comercial. É em dólares que um grande número de preços continua a ser enunciado no mercado mundial. A apreciação do euro em relação ao dólar serviu, passageiramente, de tampão à plena repercussão da alta do preço do petróleo. Em contrapartida, ela é fatal para empresas, como a Airbus Industries, que estão em concorrência directa com um rival norte-americano, neste caso a Boeing.
Desde Agosto, a Federal Reserve Board (FED) norte-americana baixou as suas taxas de juro duas vezes, em resposta a pressões internas aos E.U.A.. Esta medida não tem praticamente qualquer hipótese de fazer mais do que travar um pouco o movimento em direcção a uma recessão. Em contrapartida, ela tem um impacto imediato sobre as taxas de câmbio entre o dólar e as outras moedas. A alta do euro contribui desde já à propagação da recessão nos países membros da zona euro.

Queda do dólar: fortes determinantes estruturais reforçados por uma crise de confiança

Um Estado não pode impor a sua moeda nacional como moeda internacional a não ser que seja o país mundialmente dominante, no plano industrial e tecnológico. É este um dos ensinamentos da história do capitalismo, que a longa agonia da libra esterilina ilustrou no caso da Grã-Bretanha. Muitos comentadores desconhecendo a dimensão do défice comercial dos Estados Unidos subestimam a sua importância. Ele traduz muito mais e bem outra coisa do que o efeito de escolhas de política macro-económica, de “erros de pilotagem”. Ele resulta de dois processos: 1) a organização, pelos grandes grupos estadunidenses do sector manufactureiro e da grande distribuição, de uma transferência para a Ásia (e em particular para a China) de uma parte da base industrial dos Estados Unidos e 2) a consequência de uma concentração das despesas tecnológicas em função de um número muito pequeno de sectores, com a perda da preeminência global a favor da Alemanha e do Japão. A dominação tecnológica dos Estados Unidos subsiste apenas nas telecomunicações e em certos domínios da química e da biotecnologia. O caso da Boeing não pode ser generalizado. A baixa do dólar vai atenuar apenas de uma forma muito limitada a perda de competitividade da maior parte das empresas. Por outro lado, não há nenhum sinal de que os grandes grupos estadunidenses ponham fim à sua estratégia de localização na Ásia de uma fracção crescente dos seus investimentos em pesquisa. Para tomar apenas um exemplo, desde o início do decénio é na China que a Microsoft criou os seus novos centros tecnológicos.
Na Ásia, havia o Japão. Agora há a China. Numa grande parte, a acumulação de reservas muito importantes em dólares nos bancos centrais da Ásia é a consequência desta redistribuição mundial das capacidades de produção e não somente das políticas, levadas a cabo pela Fed, de relance económico pela criação de novos meios monetários. À medida, nomeadamente, que a acumulação se consolida na China e que esta se torna independente dos investimentos estadunidenses, pôr-se-á a questão do lugar deste Estado e da sua moeda no sistema mundial das moedas. No imediato, o problema que os bancos centrais asiáticos se colocam (mas também os fundos de Estado dos países do Golfo Pérsico e todos os grandes investidores fora dos Estados Unidos), é o de saber como proceder com respeito a uma moeda de reserva que perdeu mais de 25% do seu valor em cinco anos. Como alguém já notou, estamos em presença da maior anulação de dívida jamais praticada na história do capitalismo desde a revolução industrial (“the biggest default in history”).
O dilema quanto ao dólar coloca-se pelo menos desde finais de 2006. Tornou-se ainda mais agudo desde que a crise dos títulos hipotecários revelou que os bancos norte-americanos venderam aos investidores, durante meses a fio, não activos comportando um certo risco (susceptível de ser razoavelmente coberto) mas verdadeiros efeitos de pacotilha no sentido mais forte do termo, fancaria financeira pura e simples. Alguns fundos de colocação, mas também o Banco da China, sofreram perdas importantes por terem comprado títulos “cegos” contendo efeitos de pacotilha. Pensarão agora duas vezes antes de comprar com toda a confiança. Alguma coisa se quebrou definitivamente. Na queda do dólar há assim agora também uma componente de grave crise de confiança em relação a uma parte, pelo menos, dos bancos e dos mercados financeiros dos Estados Unidos. Um dos cenários de risco sistémico, monetário e financeiro, é o que seria (e não deveremos antes dizer agora, “que será”?) provocado por uma baixa do dólar abaixo de um certo limiar que obrigaria os bancos centrais da Ásia a cessar o apoio que prestam à moeda norte-americana. Ninguém sabe onde se situa esse limiar. Tanto os bancos centrais asiáticos como os Estados petrolíferos do Golfo Pérsico farão tudo para suportar o dólar enquanto puderem. Não está nas suas intenções provocar uma crise. Mas estamos numa situação em que a mínima falha financeira, de uma certa importância, pode levar os investidores a mudar de moeda de reserva. Independentemente da crise de sobre-produção, da qual estão reunidos todos os ingredientes, uma crise financeira mundial deve ser considerada parte componente do horizonte político com que os assalariados provavelmente terão de se confrontar.

Não desesperar de Neuilly?

A queda do dólar não será linear. Factores muito numerosos podem provocar recuperações passageiras. A questão está toda na maneira como elas são apresentadas e interpretadas. A esse propósito a leitura do ‘Le Monde’ de sábado 29 de Dezembro é uma lição. Desde meados de Dezembro, o dólar conheceu uma ligeira retoma. Durante alguns dias manteve-se num nível à volta de 1 dólar e 45 cêntimos por euro. Tanto bastou para que o ‘Le Monde’ titulasse “A resistência da economia americana à crise das hipotecas tranquiliza os mercados: a queda do dólar poderá interromper-se em 2008”. O artigo apoia-se no conselho de alguns “especialistas” franceses, cuja preocupação, manifestamente, é não dizer nada que contradiga o discurso de Sarkozy e seus ministros. Um deles vai ao ponto de pretender que se possa aplicar a uma moeda de reserva internacional, que é suposto (como o seu nome indica) oferecer aos que a detêm um “tesouro de guerra” não desvalorizável, um raciocínio em termos de lei da oferta e da procura: uma vez que a baixa do dólar permite adquirir activos e produtos norte-americanos menos caros, a procura por dólares vai aumentar e com ela a taxa à qual ele se troca. É passar em claro as somas gigantescas que foram acumuladas, cujos possuidores viram - e vêm ainda - o valor baixar tão fortemente. Outro dos especialistas interrogados não hesita em anunciar que a crise do crédito bancário está totalmente controlada e a recessão norte-americana afastada. Uma única pessoa explica que se trata de uma retoma estreitamente ligada a oportunidades de colocação específicas.
A leitura do ‘International Herald Tribune’ (datado de 29 de Novembro, logo dado à prensa um dia após o ‘Le Monde’) remete as coisas no seu lugar. Desde logo no que concerne às perspectivas de recessão nos Estados Unidos, mas de seguida também quanto ao movimento do dólar. O relatório mais recente sobre o sector da construção acaba de calcular que a queda das vendas imobiliárias em Novembro ultrapassou “mesmo as previsões mais pessimistas de Wall Street” (página 18). A provisão de casas e apartamentos por vender engrossa cada vez mais. Todos os novos estaleiros estão parados, mas serão precisos vários anos antes que a provisão de alojamentos por vender se acabe de escoar. O preço médio de um pavilhão baixou 14.000 dólares num só mês. No contexto do mercado de trabalho - de que um dos fundamentos é a mobilidade exigida pelas empresas – uma queda de uma tal amplitude é uma catástrofe, mesmo para assalariados pouco endividados. De um só golpe, o euro subiu novamente para 1 dólar e 47 cêntimos. Os especialistas interrogados pelo ‘International Herald Tribune’ não se julgam na obrigação de tranquilizar uma qualquer “opinião pública”, entregue às maiores inquietações. A sua lealdade vai antes para os grandes investidores, ansiosos por não perder dinheiro estupidamente. Deste modo, um deles explica que a entrada num ano eleitoral adiará mais uma vez a prossecução de políticas que possam controlar a queda. Prevê-se mesmo uma taxa de câmbio que colocaria o euro a 1 dólar e 70 cêntimos. Sob o título “a popularidade do dólar baixa”, um artigo noticia os últimos dados do F.M.I., que dão conta de uma baixa na parte do dólar nas reservas mundiais, de 65% em finais de Junho para 63,8% em finais de Setembro. No mesmo jornal, dá-se conta que a federação alemã de pequenas e médias empresas acaba de publicar um inquérito donde resulta que 45% das empresas vêm tornar-se mais tensa a sua relação com os bancos, temendo vir a experimentar uma verdadeira contracção do seu crédito em 2008. Por fim, as novidades provenientes da China também não são boas. Uma bolha bolsista formou-se em Xangai, de tais proporções que a relação preço / rendimento dos títulos é uma das mais elevadas do mundo. Os investidores estão com medo, tanto mais quanto o Governo deve reapertar a política monetária para fazer face à inflação. Eis o tipo de coisas de que será composto o ano 2008. Bom ano novo, mesmo assim...!
(*) François Chesnais é um académico francês, professor de Economia Internacional na Universidade de Paris XIII-Villetaneuse. Entre os seus trabalhos de maior destaque contam-se 'La mondialisation du capital' (1994) e 'La mondialisation financière' (1996), obra colectiva por si organizada que já se tornou um clássico. É membro do conselho científico do ATTAC, embora critique asperamente os seus pressupostos ideológicos. Este pequeno artigo foi publicado no nº 2 de 'La Lettre du Carré Rouge' (Janeiro de 2008). Em finais de Março de 2008, o dólar troca-se já oficialmente por 1,57 euros. A Reserva Federal norte-americana (Fed) já baixou as suas taxas de juro por seis vezes desde Setembro de 2007, de 5,25% até aos actuais 2,25%. No mesmo período, o BCE manteve teimosamente a sua taxa nos 4%.

Via: http://www.ocomuneiro.com/nr6_03_francoischesnais.html

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