terça-feira, 15 de abril de 2008

A Amazónia Internacionalizada

considerações sobre a fronteira setentrional.

Felipe Kern Moreira

Aqui está um assunto que sempre quando surge remete às teorias conspiratórias. Pois bem, muita gente já ouviu falar do mapa do Brasil que constara em livros didáticos nos Estados Unidos da América e que apresentava a região amazônica como área internacional. Quando estas ondas conspiratórias surgem a comoção atinge a chancelaria brasileira que de uma forma ou outra procura fazer um levantamento dos dados. No caso específico do mapa escolar americano já ficou constatado que a página do livro era uma falsificação grosseira e a autoria do engodo restou atribuída a grupos nacionalistas.
É claro que o desfecho deste caso em específico não põe termo à questão. De qualquer forma, existem vieses estratégicos que entendem que a Amazônia é uma região sobre a qual repousam interesses externos.
O desafiador num exercício de análise de conjuntura desta natureza é conseguir conferir cientificidade ao texto. A ciência enquanto percepção e sistematização da realidade possui dificuldade em enfrentar temas que apresentem dados quantitativa ou qualitativamente incipientes porque a aceitação de um argumento na comunidade científica passa também pela clareza dos dados que lhe confere suporte. Por outro lado, se todos os dados em política internacional fossem tão claros não haveria a necessidade de serviços de inteligência.
Neste sentido, muitas vezes parece inglória a tarefa do pesquisador e estrategista em relações internacionais na medida em que existem dados que conferem significação às relações de poder que não estão disponíveis. Considerados os constrangimentos, interessa a este texto debater determinados ajustes que o pensamento estratégico tem sofrido no sentido de tentar compor um cenário de interesses e estratégias de projeção de poder na fronteira norte amazônica.
Ocorre que a ameaça de internacionalização da região amazônica, seja pela utilização da violência não legitimada seja pelo exercício do poder brando, encontra mais ressonância no imaginário social do que nos postulados estratégicos. Mesmo na hipótese da mudança dos interesses e do eixo do discurso legitimador das potências mundiais, de guerra contra o terror para a hegemonia ambiental, a hipótese de domínio militar da Amazônia parece insustentável. A heterogeneidade política dos países envolvidos, a considerável dimensão territorial da floresta tropical em conjunto com o domínio da capacidade logística de guerra na selva tornam o domínio pelas armas uma moção com expressivo custo material e principalmente político.
Em certa medida, as dinâmicas eleitorais na Austrália e nos EUA têm acenado para o arrefecimento do discurso legitimador de coalizões militares e a necessidade da participação estatal mais efetiva nos regimes ambientais. Contudo, na fronteira setentrional particularidades apontam para a configuração de um cenário estratégico específico com interesses, movimentos e constrangimentos identificáveis.
Para explorar este assunto gostaria de utilizar a metáfora do quebra-cabeça: fornecendo algumas peças para a composição de um quadro. As considerações deste texto dizem respeito à informação disponível e a visualização da figura completa do puzzle deixa-se facultada à inteligência ou à imaginação do leitor.
Se formos reparar com atenção, na fronteira norte do Brasil, entre o delta do Amazonas e o do rio Orinoco, existe um arco de relevância estratégica tanto em nível estrutural quanto conjuntural. Por estrutural entendem-se os fatores estáticos, de longa duração como a geografia física e em nível conjuntural os dinâmicos, contingenciais, como as dinâmicas políticas e jurídicas.
Dentre os fatores estruturais, nesta região os estudos geológicos apontam para a existência de manganês, petróleo, urânio, nióbio, pedras preciosas. São os considerados minerais estratégicos. O manganês é fundamental para a indústria do aço; muitos países possuem o minério de ferro, mas poucos o manganês. O urânio constitui uma alternativa energética viável principalmente considerando o domínio tecnológico brasileiro no campo do enriquecimento para fins pacíficos. O nióbio entre outras coisas é apropriado para construção de ductos de água e petróleo a longas distâncias, mas também é utilizado na produção e energia nuclear, no campo industrial bélico e aeroespacial.
No contexto conjuntural, propõe-se que a análise da fronteira norte exija a ampliação do foco na tríplice fronteira para o arco setentrional - Brasil, Venezuela, República Cooperativista da Guiana, Suriname e região administrativa da Guiana Francesa - o qual impressiona tanto pela complexidade social e institucional quanto pelo descaso da chancelaria brasileira.
No contexto mundial, sabe-se que Estados Unidos da América, Nova Zelândia, Canadá e Austrália foram votos contrários à Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, aprovada na ONU depois de 22 anos de negociação. Estes quatro países - todos ex - colônias britânicas - possuem receio que o uso da terminologia ‘autodeterminação’, relacionada com situações de descolonização, coloque em cheque a integridade territorial enquanto princípio constitucional do Estado democrático de direito.
A preocupação destes países não é compartilhada pelo Brasil mas a Convenção de fato pode gerar o debate sobre antinomias constitucionais e não é coincidência que o Supremo Tribunal Federal tenha recentemente recebido a visita do Alto Comissariado da ONU para os direitos humanos para debater a agenda dos povos indígenas.
Aqui, não há consenso se se tratam de direitos humanos ou culturais e no campo da dinâmica normativa a diferença é considerável.
Coincide também que muitas das áreas protegidas na região como é o caso de 70% do território de Roraima possuam jazidas consideráveis e também grande parte destas estejam em regiões de faixa de fronteira.
Ainda algumas peças parecem ser importantes. O papel de liderança na América Latina que em parte justifica o apelo brasileiro por um assento permanente no Conselho de Segurança é compartilhado com reservas pelos países latinos.
Agora, ao contrário da relação com a América hispânica, a Guiana e o Suriname - marginalizados na academia e na política - são abertos à influência brasileira sem que isto soe à prevalência lusófona. Em Georgetown existe um bairro brasileiro, mas não há o ensino do português; já em pleno território brasileiro, na maloca do Jakamim, terra indígena macuxi, a língua franca é o inglês.
Relevante é também que as forças armadas na Colômbia são as mais bem equipadas na América Latina e aí se encontra um eixo de desequilíbrio regional visto pela Venezuela como ameaça potencial. Preocupa que Chavez não aprendeu a lição que tudo o que se fala deve ser verdade, mas nem toda verdade deve ser dita.
Por outro lado, é descabido atribuir à modernização bélica da Venezuela - até então - o qualificativo de corrida armamentista.
Nesta medida, atuação americana como causa da disputa em nível estatal parece evidenciar o transe da leitura instantânea da região. A Amazônia é um dos temas mais decisivos da política internacional brasileira. Neste raciocínio, o arco setentrional está compreendido nas fronteiras simbólicas da Amazônia, pois a maior parte deste espaço não compartilha floresta tropical.
A região caracteriza-se ainda por ser politicamente instável, heteroglóssica, pelas nacionalidades de conveniência e pela expressiva presença estrangeira desde o século XVI.
Assim, a principal ameaça à fronteira norte parece ser o vazio de propostas para lidar com estas características inerentes à região que internacionalizada já é.
A intensificação da atuação das chancelarias na Guiana e no Suriname, a efetivação dos processos de integração regional e a harmonização dos interesses nacionais com o regime dos povos indígenas são algumas das estratégias que podem equacionar uma das mais antigas estratégias dos Impérios: dividir para dominar.

Felipe Kern Moreira é Professor da Universidade Federal de Roraima – UFRR e doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB (felipe.kern@gmail.com).

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