segunda-feira, 24 de março de 2008

América Latina

Uma reflexão sobre o futuro da Venezuela
por Pedro Ayres [*]
Hoje, a exemplo dos anos 60 e 70 do século passado, a questão das transformações sociais e políticas por via revolucionária é tema recorrente. A Revolução, além de ser objeto das preocupações de quase todos os movimentos políticos e sociais da América Latina, é uma realidade do dia-a-dia em alguns países, como a Venezuela, a Bolívia e o Equador. O fato de haver esse novo apelo para drásticas mudanças em sociedades capitalistas que até a pouco blasonavam equilíbrio e poder é bem sintomático. Se naqueles idos a pregação revolucionária tinha como leit motiv a crítica ao capitalismo, ao colonialismo e ao imperialismo, hoje, essa crítica é mais abrangente e totalizante, com o acréscimo da ecologia, da liberdade e da democracia como características essenciais. Além destes, novos ingredientes sociais, políticos e econômicos foram acrescentados ao que era apenas uma crítica elementar, pois, as básicas relações de domínio, poder e exploração não sofreram nenhuma mudança, apenas se multiplicaram em detalhes e processos aparentemente complexos e com eles, as novidades. Dentre os aspectos mais essenciais dessa crítica estão dois que são os mais visíveis: a democracia e a liberdade. Para alguns teóricos, como István Mézáros, um lúcido pensador húngaro, da linha de György Lukács, esses dois momentos da vida humana sempre foram basilares para todo o pensamento revolucionário desde a Comuna de Paris. O esquecimento nos últimos 50 anos do século XX a que foram relegados, pode ser compreendido como a causa do fenômeno da expansão capitalista, a solução política definitiva – " o fim da História" – , como se viu nos terríveis anos do neoliberalismo. Anos em que a cruel fantasia do consumo, sinônimo de liberdade individual e o livre mercado,entendido como último avanço político e democrático das nações tornaram-se regra e dogma. Um dogma que viciava todas as relações sociais e políticas com sua pregação individualista, não participativa e anti-solidária. É a pregação e uso da máxima "você tem que levar vantagem em tudo" em sua total e plena acepção. O problema surge quando a realidade, esta estraga prazeres, começa a demonstrar que aquelas verdades políticas e filosóficas não eram nem filosóficas e muito menos um novo quadro político para todos. É o fim das bolhas especulativas das empresas de informática, dos mercados financeiros secundários e da desvalorização desse tipo de atividade como algo positivo. Com o retorno aos padrões da economia real fica mais claro o fracasso do livre mercado. Desde que a prática neoliberal falhou como expressão político-econômica global, ao gerar desequilíbrios regionais e enfraquecer os eixos desse sistema mercantil-financeiro, questões há muito reprimidas como o nacionalismo e soberania, desenvolvimento sustentável e crescimento igualitário, democracia e liberdade política das massas, ganham a consciência de alguns povos. O resultado disso tudo é a compreensão que a liberdade não pode ser medida pelo que se consome, que a democracia tem que ser de tal modo que todos sejam igualmente partícipes das decisões políticas do Estado. É evidente que na maioria desses países o processo de luta tem sido orientado para uma espécie de combate formal e circunscrito ao estabelecido pelo poder que se quer substituir. O resultado é um caminho muito tortuoso, cheio de curvas, recuos e poucos avanços. Ora, como a Revolução é uma realização coletiva e original de ruptura de um status não tem uma fórmula ou modelo, pois em cada país e em cada tempo surgem as condições, os modos e os meios de sua realização. Na atualidade, graças ao retorno conceitual dos processos revolucionários ao sentido original de suas origens libertárias e democráticas, existe a clareza da especificidade de cada Revolução. Um fato que tem gerado algumas incompreensões, mas que, em compensação, cria novas alternativas experimentais de prática e processos transformadores. Uma revolução é sempre cheia de problemas criados pela permanência das contradições da sociedade que está sendo reconstruída. Além das naturais questões políticas e econômicas, há uma questão que tem a máxima importância, porém não é muito vista, o que torna os seus efeitos ainda mais sejam funestos. Ela poderia ser chamada de pressa subjetiva ou necessidade de ser sujeito do processo. Embora haja quase um completo silêncio sobre o que pensa o homem comum durante esses períodos, se olharmos com muito cuidado e sem nenhum tipo de preconceito, veremos que no pensamento desse homem existem os mesmos sonhos e veleidades que atingem a todos. A grande dificuldade é admitir que tudo se realiza no devido tempo e ritmo permitidos pelas condições reais. Assim, ao ficarmos frustrados com os "atrasos" do processo revolucionário, na realidade estamos querendo dizer que estamos com pressa para testemunhar ou sermos protagonista. É a permanência do sentido da liberdade individualista do capitalismo, em que se tem que ser protagonista e usufrutuário das mudanças que estão se realizando, da mesma forma que alguém planta um abacateiro e quer que logo no primeiro ano de plantado produza frutos. É muito difícil decompor, intitular e rotular as contradições cotidianas, pois, como fazem parte da nossa vida e comportamentos sociais, só conseguimos vê-las a partir dos estereótipos já conhecidos, ou seja, aplicamos a lógica formal para entender e explicar o que faz parte de um movimento dialético. A resultante é sempre falha, pois, a nossa percepção nesse caso nos é dada, não pelos padrões da realidade, mas, acima de tudo, pela quantificação das frustrações e conquistas obtidas em termo de gozo pessoal. Ora, como o nosso modo de pensar é formado a partir de conceitos ideológicos burgueses, mesmo quando exercemos a crítica desses conceitos, sempre há um resíduo para nos condicionar o comportamento. Um comportamento que pode muito bem oscilar entre a feroz crítica moralista e teórica ou um excesso de compaixão social, onde há desculpas para quase tudo em nome de uma relatividade que não existe e nem deve existir nos processos de mudança. Na Venezuela, por exemplo, hoje em dia é comum o debate a respeito de erros e acertos de tal ou qual projeto ou ação de governo. Um dos temas mais constante nos escritos e falas dos venezuelanos envolvidos com o processo político revolucionário, é a corrupção no serviço público e a visão de que ela é um desvio do processo. É uma análise equivocada, a corrupção é condição sine qua non do sistema capitalista, portanto, o que há é a continuidade de uma velha estrutura. Como a estrutura do Estado ainda é a mesma que serviu a Andrés Peres e Caldera dificilmente ela terá a agilidade e a boa vontade para realizar funções/atividades que entrem em conflito com a prática usual. É quase que uma atitude autodefensiva por parte do capitalismo que esse Estado ainda personifica. Da compreensão desses fatos é que surgirão a correção e o enquadramento da estrutura estatal e das pessoas por meio de atitudes práticas. Assim, numa rápida leitura do período pós-referendum de 2 de dezembro, tem-se como tônica a crítica "metralhadora-giratória", tanto da parte de venezuelanos quanto de não venezuelanos. Entretanto, é preciso que tenhamos em conta o valor desse procedimento, pois, antes desse tipo de processo, a crítica quando existia, perdia-se nela mesma. Hoje, está obrigando a que todos pensem até que se atinja um bom grau de maturidade. E para melhor compreender o que se passa, é sempre bom lembrar as palavras de Vladimir Ilitich Ulianov para explicar como era o partido bolchevista, "o Partido é o que é". Ou seja, mesmo dentro do Partido bolchevista coexistia o novo e o velho, algo que também é verdadeiro até para as pessoas como indivíduos. Isso para podermos entender a prática individual e coletiva de todos nós. No que se refere ao Estado, é sempre bom compreender que ele é uma realidade composta de diversas manifestações, ora municipal, ora estadual, ora federal, mas sempre com unidade na ação essencial, qual seja ser instrumento político-administrativo para a acumulação capitalista e a preservação do sistema em termos políticos. É, pois, nessa realidade que os processos revolucionários acontecem. Sem manuais, sem bulas e sem cânones a serem seguidos. Uma autêntica criação histórica. Para ficar mais fácil o entendimento do atual processo político venezuelano é necessário se compreender que agora é que está acontecendo a industrialização real do país, com a substituição das importações. Pode-se dizer que só agora é que surgem os elementos e fatores para a consolidação de uma burguesia nacional. Uma burguesia que também tem seu projeto de expansão e poder. Assim é que se deve entender uma série de medidas econômicas e políticas adotadas pelo governo. Medidas para reduzir o poder e a influência do imperialismo e seus aliados oligarcas. O simples fato do Presidente Chávez vislumbrar a necessidade de marcos constitucionais capazes de possibilitar mudanças menos traumáticas, numa quase transição pacífica de um estado capitalista para um estado socialista, não significa que a maioria da população venezuelana tivesse compreendido ou aceito os benefícios e vantagens que obteria com as mudanças propostas. É, pois, dentro desse quadro real que o processo terá que se desenvolver. Ou seja, há um conhecimento que inexistia antes e que pode servir de guia para o futuro. Um futuro que deverá ser construído a partir da prática unitária da ação, do avanço da consciência política e da nítida compreensão tática dos momentos. As próximas eleições estaduais e municipais poderão ser a base para esse salto, com a escolha de candidatos realmente revolucionários e de clara identidade com o povo. Mais do que um Bolívar Fuerte é necessário um Partido Fuerte, aliado a Partidos Fuertes.

[*] Jornalista, brasileiro, editor do blog http://pedroayres.blogspot.com/.
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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